capítulo 2

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   Durante todo o percurso para casa mantenho o rosto grudado na janela, olhando
as casas passarem mais rápido que eu consiga acompanhar. Minha mãe fala, mas não estou prestando atenção, meu pensamento está na psiquiatra, maisprecisamente no que ela disse e no que isso me fez sentir. Eu agi como uma criança
lá dentro, porque no fundo eu sabia que ela estava certa e precisava voltar a vida
de como era antes. Pelo menos o mais próximo disso. Se eu fizer isso temo
esquecer da minha irmã, viver uma vida perfeita e feliz enquanto ela está embaixo
da terra não seria justo.
   Meu comportamento infantil fez com que eu já tivesse 3 psiquiatras diferentes,
"nenhum deles é bom o suficiente para você, minha filha" foi o que meu pai disse
todas as vezes. Já estou a 4 meses com a Bianca e se eu ainda continuo lá significa
que meu pai finalmente achou bom para me curar. Curar. Odeio essa palavra.
   - O que você acha, Rebeca? – A menção do meu nome me faz sair do devaneio
em que estava.
    - Perdão? – Franzo a testa tentando me lembrar do que ela estava falando.
   - Disse que seria uma boa se tirássemos umas férias, naquele resort em Natal
que você tanto gosta, acha uma boa? – Perguntou enquanto virava na rua onde
morávamos.
   Fiz uma careta. Todos os anos passávamos uma semana em Natal nas férias, era
uma tradição da família, mas sem Sara as férias não seriam as mesmas. Parecia
que todo mundo já estava voltando a vida como antigamente, já haviam superado.
Superado Sara.
   - Não sei se seria uma boa ideia- disse me virando para ela- Acho que ainda não
estou pronta para me divertir. Se você quiser muito ir eu topo.
Minha mãe mordeu o lábio inferior pensativa e não emitiu nada mais que
"humm" antes de fazer a baliza e estacionar o carro na garagem.
   -Você sente a falta dela? – Pergunto no ímpeto pegando minha mãe de surpresa.
  - É claro, meu amor, todo santo dia. – Seu rosto se suavizou ao responder.
  - Então como consegue? – Antes que minha mãe tivesse tempo de responder eu
disparei- como consegue agir como se tudo estivesse bem, como se ela estivesse
ainda aqui. Como consegue pensar em viajar?
   Olhei no fundo de seus olhos esperando que o sentimento de culpa da minha
mãe me atingisse, como aconteceu no consultório com a doutora. Não sinto nada,
nenhuma dor ou calafrio percorre meu corpo e isso é resposta o suficiente. Ela não
sente culpa de tocar a vida sem a filha perdida.
   Não espero a sua resposta, pelo menos não escuto quando entro em casa
correndo e bato a porta do meu quarto.
                            ∆
   Deixo a água quente correr pela minha pele mais um pouco antes de desligar o
chuveiro. Dizem que o chuveiro é onde mais pensamos sobre a vida, comigo é
diferente, quando estou tomando banho é a única parte do dia em que minha mente
fica fazia e aproveito cada segundo disso.
   O tecido da toalha arranha minha pele quando a seco e a enrolo no corpo. Paro
em frente ao espelho com receio – não me olho faz muito tempo-, como de costume
não gosto do que vejo. Desenrolo a toalha e a deixo cair no chão, meu corpo está
muito magro, tão desnutrido que minhas costelas aparecem, entretanto onde esse
fator mais marca é no meu rosto, as bochechas acentuadas demais e os lábios finos.
   Passo a mão pelo meu rosto esquelético e sigo com o dedo a linha das minhas
olheiras que contrastam contra minha pele pálida. Sigo para meu cabelo ruivo
desbotado e maltratado, faço coque firme no alto da cabeça, ultimamente só tenho
usado assim. Dou uma última olhada no meu corpo, nada nele me favorece, meus
seios são pequenos e o meu bumbum do qual costumava me orgulhar em uma outra
vida agora também sucumbiu a magreza.
   Quando finalmente acho que acabei de me torturar com o meu reflexo no
espelho, a cicatriz que ocupa toda a minha coxa- da cintura ate o joelho- chama
minha atenção, ela é um lembrete constante do que aconteceu comigo. Por isso a
calça é a minha peça de roupa preferida, a esconde.
   Saio do banheiro e o ar frio do corredor faz com que meus pelos se arrepiem,
abraço meus braços e dou uma corridinha para o meu quarto. Bom, ele foi a única
coisa da minha vida que não mudou, o papel de parede rosa com flores brancas, a
cama no canto da parede e a escrivaninha branca virada para a janela, não era um
cômodo muito grande, mas era o suficiente para que eu passasse o dia todo lá.
   Visto uma roupa de dormir, embora ainda esteja no meio da tarde, pego um livro
qualquer da minha estante e me jogo na cama. Depois de tudo que passei, ler me
traz paz, é como se eu pudesse fingir que a minha realidade não existe, me envolvo
tanto com a história que parece que eu faço parte daquele livro.
   Depois de mais ou menos meia hora minha barriga começa a roncar, largo o
livro de lado e vou para cozinha. Agradeço que minha mãe não esteja aqui para
não ter que lidar com o que disse mais cedo. faço um queijo quente e um copo de
achocolatado, minha fome é tanta que como o pão em pé apoiada na bancada da
cozinha. Como forma de desculpas lavo a pilha de louça que já estava na pia.
  No caminho de volta para o meu quarto me detenho na porta do antigo quarto
de Sara, a última vez que estive do lado de dentro foi poucas horas antes de sua
morte. Eu fazia isso sempre, ficava minutos na frente da porta só a encarando, sem
entrar. Mas hoje algo estava diferente, eu queria entrar, queria sentir parte da sua
presença.
   Colei a testa na madeira escura da porta e inspirei fundo tentando controlar a
minha respiração e me acalmar. Estar ali fazia meu corpo inteiro tremer por uma
espécie de frio incontrolável que vinha de dentro de mim. A maçaneta redonda de
ferro é fria sob minha mão quando eu a giro e abro completamente a porta.  Mesmo
sabendo que Sara se foi a muito tempo espero encontrá-la deitada na cama com
seu head fone, ouvindo músicas que ninguém mais escutaria e comendo batatinhas
engorduradas enquanto fazia a lição.   Embora ela não esteja aqui, consigo ver essa
cena como se fosse real.
   Com hesitação entro no cômodo, a luz alaranjada do pôr do sol é a única
iluminação presente. Meus olhos varrem toda a extensão do quarto. Tão diferente
do meu. A cor amarela das paredes mal dá para ver por de trás das dezenas de
posters de famosos e fotos que recortava de revistas, espalhadas pelo teto tem
pequenas estrelas que brilham no escuro.
   Todas as bonecas estavam acomodadas em duas prateleiras, - eu sempre
criticava aquela decoração, era algo assustador e sempre que eu perguntava como
conseguia dormir sabendo que todas a observava durante a noite ela apenas
revirava o olho e falava que espíritos não existiam e que eu era muito medrosa.
   Caminhei até a sua penteadeira passando dois dedos sobre a superfície, uma
camada fina de poeira sujou meus dedos, me perguntei quanto tempo minha mãe
não limpava o quarto. Um batom escondido atrás do fixador de maquiagem me
chamou a atenção, tirei ele dali e abri a tampa, não consegui conter um sorriso
quando percebi que era o batom preferido de minha irmã. Ela não deixava de ir
para lugar nenhum sem usar aquela maquiagem de morango com cheiro enjoativo.
  Num movimento inconsciente levei o objeto ate o peito e o mantive ali por um
bom tempo até um pensamento me passar pela cabeça. - No dia do acidente pude
jurar que vi Sara colocar ele na bolsa, então como pode o batom estar de volta a
seu quarto? A equipe de busca teria conseguido recuperar alguma bagagem? – fuço
na minha memória alguma lembrança dos policiais entregando alguma coisa que
pertencesse a ela em nossa casa, mas esta era inexistente. Então como? Aquilo não
poderia ter aparecido magicamente de volta pro lugar. Poderia?
   Não, isso é ridículo, rio de mim mesma. Provavelmente ela deve ter tirado da
bolsa antes de sairmos, é a solução mais lógica e a única.
   Quando sento na sua cama e guardo o batom no bolso da minha calça percebo
que todo o medo de entrar ali era por nada, o medo de entra e encontrar o fantasma
de Sara era surreal. O que eu sentia era apenas saudades. Pura e dolorosa.  Então
deixe me fazer o que por muito estava evitando.
   Lágrimas escorriam pelo meu rosto enquanto eu deixava as lembranças
invadirem minha mente, como enxurradas, todas de uma vez.    Captando todos os
momentos no qual passamos juntas, os sonhos que planejávamos e que nunca será atendido. Me demorava mais naquelas mais felizes e divertidas, até que os risos
superassem o choro.
   Eu podia sentir ela comigo.
   Segurando minha mão sempre que eu estava triste. Podia senti-la fazendo isso
agora mesmo.
   Antes de deixar o quarto completamente para trás fui até a área e peguei todos
os materiais de limpeza que conseguia segurar com os dois braços, coloquei as
horríveis músicas que sara escutava e comecei a limpar.
   Pelo canto do olho pude ver meus pais encostados no batente da porta, pequenos
sorrisos despontavam no canto de suas bocas.

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