Para um consultório psiquiátrico o lugar era bastante deprimente, as paredes de um branco já encardido era a única cor da sala. A decoração também não era algo a se fazer elogios, com uma pequena mesa de vidro- onde se encontra a doutora-, uma poltrona e um sofá de couro preto estão um de frente para outro, separado apenas por um tapete cinza. Pendurados na parede estão apenas os certificados e diplomas junto de um grande calendário com foto de um gatinho fofo.
A médica vem a meu encontro quando me vê entrando na sala, senta na sua poltrona já gasta com um bloquinho e uma caneta, onde começa algumas anotações. Um ritual antes de começar a sessão.
- Bom dia Rebeca- sua voz esta alegre como sempre e um pequeno sorriso aparece em seus lábios-, como foi sua semana? Aconteceu algo que queira compartilhar?
- Venho tendo pesadelos todas as noites. - Belisco o meu dedão, um único sinal do desconforto que estou sentindo- Não durmo à noite e de dia não consigo focar nos estudos por estar cansada demais.
Não conto tudo a ela. Não conto que toda vez que acordo de um sonho ponho as tripas para fora, não conto que cada vez que eu acordo fico chorando durante quase uma hora, não conto que toda vez que isso acontece tenho vontade de arrancar a pele do meu corpo.
- Você tem tomado os remédios na hora certa? – Inclino a cabeça para frente como resposta- Bom, o aniversário da sua irmã e do acidente está se aproximando e o seu corpo está reagindo, mandando sinais do seu medo por meio desses pesadelos. Talvez isso seja um aviso de que seu corpo não quer mais carregar esse fardo sozinho. Rebeca, você não contou a ninguém sobre o que aconteceu lá, sobre o que passou, é preciso que se abra comigo para que eu possa ajudá-la. - Fiquei quieta, não consegui responder, então só encarei o nada reunindo coragem suficiente para falar. – Voltar para a escola também pode ser um bom recomeço.
Ela estava certa, já haviam se passado onze meses desde aquela fatalidade e ainda não tinha me aberto com ninguém, simplesmente não conseguia, não quando ainda não entendo muita das coisas que mudou em mim, não quando me sinto uma aberração pelo que sei fazer.
A primeira atitude que tomei depois de voltar para casa foi largar a escola, não aguentaria todos aqueles olhares de pena que seriam direcionados a mim. Então me tranquei no quarto e comecei a estudar por mim mesma, meus pais falam que é uma forma de lidar com luto, talvez seja, mas eu só queria me afastar o máximo de todo mundo.
- Não tenho nada a compartilhar- meu tom de voz saiu ríspido – se quer me ajudar comece me dando remédios que realmente me façam dormi. Esse é o seu trabalho. – Senti a ponta da minha orelha queimando.
Ela apenas suspirou e levantou se dirigindo para a pequena mesa no canto, vasculhou uma gaveta e tirou de lá dois frascos de comprimidos. Em um movimento imperceptível ela levou a mão ao cabelo e afofou o seu black enquanto voltava para a poltrona.
- Este, é para ser tomado assim que acordar, te dará energia para enfrentar o dia-disse apontando para o frasco amarelo- e esse outro você toma duas horas antes de ir deitar e não vai acordar pelo resto da noite.
Me inclinei do sofá para pegar os dois fracos, mas antes que eu tivesse êxito, a doutora afastou os dois de mim num movimento preguiçoso. Pela sua expressão dava para ver o desespero em meus olhos por aquelas pequenas coisas brancas.
- A senhorita não pode vir aqui toda semana pedindo só por remédios cada vez mais fortes. Já é a sua décima sexta semana como paciente e ainda não se abriu em nada, não posso continuar tratando você se só vem aqui pelos soníferos. – A bronca me atingiu em cheio.
- Meu pai paga parte do seu salário para que eu me sinta melhor com a vida desprezível que estou levando e se essas porcarias de pílulas me fazem dormir um pouco melhor, então dar elas para mim são uma forma de me tratar. - Retruco furiosa.
Não pareço ter convencido Bianca, mesmo depois que ela suspira e joga os dois frascos em minha direção, pego os no ar sem hesitar. Uma parte de mim se sente triunfante por ter conseguido o que queria, mas a outra, a mais racional, sabe que isso é totalmente errado e implora para que peça desculpas.
- Obrigada- agradeço envergonhada pelo pequeno show, enquanto levanto e saio em direção a porta.
Um pequeno aceno de cabeça é tudo que eu tenho em resposta.
Antes que a porta se feche completamente às minhas costas dou mais uma olhada para a mulher atrás de mim. Um erro irreparável. Pois assim que o faço eu sinto, chegando sorrateira, a aberração de dentro de mim. O sentimento da doutora de falhar em me ajudar toma conta do meu corpo, tão forte e arrebatadora que reprimo um gritinho de dor enquanto essa sensação percorre meu corpo e sai sem deixar nenhum vestígio além de uma lágrima solitária em meu rosto.
Tudo começou uma semana depois que eu acordei do coma induzido no hospital ao ser resgatada do acidente. As minhas emoções eram tantas e tão fortes que pareciam estarem me esmagando, a pressão que elas faziam em mim era tanta que a única coisa que aliviava era chorar. No início eu achava que era a enorme dor do luto, a dor de não poder ver minha irmã nunca mais, que apertava a cada segundo o meu peito. Mas com o passar dos meses a sensação avassaladora vinha em momentos onde eu estava distraída o suficiente para não lembrar do trauma. E algumas dessas sensações nem sequer pertenciam a mim.
De alguma forma as angústias das pessoas eram transferidas para mim, como se eu fosse imã e elas ferro. Se eu tivesse perto o suficiente elas vinham através de uma troca de olhares. Mas eram na forma dos sonhos que elas chegavam mais fortes, castigando cada centímetro do meu corpo com dor e a sensação de gelo nas minhas veias. Não consigo fazer isso parar, controlá-las, elas chegam sem aviso prévio e me tomando por inteira. Os únicos momentos que não as sinto é quando estou dopada até o limite.
No velório de minha irmã tinha muitas pessoas e caminhando de mãos dadas com elas estavam a angústia da perda. Senti-las todas juntas quase me matou, foi preciso mais que o normal de comprimidos para silenciar o sussurro de vozes e a dor dilacerante. Me possibilitou uma carona de ambulância para o hospital e uma overdose. A preocupação dos meus pais e médicos por acharem que sua filha queria se suicidar fizeram com que entrassem em consenso que eu deveria fazer terapia. Não tinha como explicar a eles que nunca planejei tirar a minha vida.
Mas ninguém pode me ajudar, ninguém é capaz de entender o que eu sou se nem eu mesma me entendo. Se eu falar por tudo que passei andarei com uma placa escrito louca pendurada em minhas costas.
Enquanto sara ganhou um caixão, eu ganhei poder. Não, poder não, uma maldição se aplica mais.
Essa é a maldição que eu carrego.
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Arcanjo
FantasyRebeca está em um conflito interno depois que um acidente levou sua irmã. Além de passar pela dor interminável do luto a jovem precisa lidar com a maldição na qual acredita que carrega, mas está disposta a mudar de opinião quando conhece um garoto...