Capítulo 6

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Eu me tornei especialista na arte de evitar as pessoas. E quando digo isso significa que tem três dias que estou evitando ir para psiquiatria, pela vergonha que vou sentir assim que chegar lá. E principalmente o medo dos meus poderes se manifestaram de novo, embora ele nunca deixasse meu corpo por completo.

A constante sensação de minúsculas agulhas furando cada centímetro da minha pele e a eletricidade que percorre por todo o meu corpo, como se não encontrasse uma abertura pela qual sair – porque, mesmo que as pessoas estejam bem, ainda há algo que as incomode, algo desprezível e não importa o quão insignificante seja eu estou sempre sentindo.

O único momento em que posso ser eu mesma, em que essa sensação deixa o meu corpo, me sentir humana de novo, é quando estou afastada de todo mundo. Geralmente trancada nos confins do meu quarto.

Esfrego o braço tentando afastar os constantes pinicos e, é claro, não funciona. Abro a porta devagar, reconsiderando se não deveria desistir e voltar para casa. Mas Bianca já pressente minha entrada antes mesmo da porta está toda aberta.

- Pensei que não voltaria mais, não depois do jeito que saiu dessa sala há duas semanas – Ela levantou os grandes olhos na minha direção e indicou o sofá com a mão.

- Tive o mesmo pensamento. Infelizmente estou de volta – mordi língua, me amaldiçoando internamente pelo que disse. Tinha prometido a mim mesma que ia mudar meu comportamento, ninguém disse que ia ser tão difícil. – Quero dizer, estou aqui porque acredito estar preparada para falar um pouco sobre mim.

Seu olhar se suavizou, parecia ter ficado feliz com a simples possibilidade de me abrir. Ela cruzou as pernas e inclinou o tronco para frente.

- Fique à vontade para começar de onde quiser. – Bianca lançou um sorrisinho encorajador.

- Desde a última vez que estive aqui eu só tive mais um pesadelo – minha voz saiu rouca ao lembrar da menina – depois eles simplesmente pararam. Eu voltei a fazer exercícios, até conheci uma senhora super divertida.

A doutora anotou algumas palavras soltas no papel com uma caligrafia que não conseguia entender.

- Tem algo a dizer sobre sua aceitação na perda da sua irmã? – balancei a cabeça.

- Eu... eu entrei no quarto dela e peguei isso – tirei o batom da bolsa e entreguei para Bianca. Ela analisou o pequeno frasco, contornando-o com o dedo – era o batom preferido de Sara, eu que dei para ela.

Lutei contra o nó que se formava na minha garganta – Deus, era tão difícil falar sobre ela. Prendi meu cabelo em um coque e afastei uma gota de suor inexistente.

- Por que deu o batom para sua irmã?

Ela devolveu o batom para mim, mas não ousei guardar de volta na bolsa, ao invés disso eu o fechei com força na palma da minha mão. Fiquei apertando ate os nos dos meus dedos ficarem brancos e começarem a doer.

Não entendi o porquê de ela estar me fazendo essa pergunta em específico, fazia tanto tempo. Franzi a testa quando respondi.

- Minha mãe nunca gostou que usássemos maquiagem, principalmente Sara que tinha treze anos na época. Ela dizia que tirava a nossa beleza genuína – olhei para o batom na minha mão e então de volta para Bianca. – Mas quando eu completei quinze eu comecei a usar, ela ficou tão triste que eu podia e ela não. Então eu comprei isso e dei para ela escondido de nossa mãe. Era o nosso segredo.

- Você disse que esse era o preferido de Sara e que foi a única coisa que pegou do quarto. Sabe qual foi o motivo de ter pegou exatamente esse objeto?

Neguei com a cabeça, não tinha nenhum motivo eu só guardei aquilo comigo porque era algo que eu podia carregar comigo para todo lugar. Ter a presença dela em todo lugar.

- Foi o momento que se sentiu mais próxima de sua irmã, um momento que nunca se permitiria esquecer. Vocês eram cumplicies, é isso que você ,Rebeca, mais sente falta na partida da sua irmã. Por isso pegou o batom, é o símbolo de quão unidas e parceiras eram.

Não sei em que momento senti meu rosto molhados. Também não me lembro o momento em que abri a boca e as palavras jorraram de dentro de mim, revelando tudo que aconteceu onze meses atrás. Um peso foi deixando meus ombros conforme eu ia contando.

Bianca tentava inutilmente lutar contra a palidez que tomava conta do seu rosto, mas eu não a culpava, no seu lugar também ficaria.

O meu poder foi a única coisa que deixei de fora e seria a única que também não compartilharia com ninguém.

No final da sessão, diferente da despedida usual com apenas um aceno de cabeça fui pega de surpresa quando seus braços me envolveram em um abraço, demorei para corresponder.

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Em casa sentada na mesa com minha mãe comíamos nossa janta. Eu a observei diversas vezes, reunindo coragem para falar o que queria. Nós não conversávamos muito, o silencio constrangedor sempre preenchia o local. As coisas não pareciam ser assim antes.

Consigo me lembrar perfeitamente de que sempre conversávamos sobre qualquer coisa e que na minha falta de sono eu ia sorrateira até seu quarto só para fofocar. Mas as coisas mudaram. Não. Eu mudei as coisas.

Minha mãe apoiou os talhares na lateral do prato e deu um gole no suco.

- Diga – ela se fez parecer desinteressada, mas sua voz entregava que estava doida para saber o que estava pensando – não para de me encarar desde que sentamos aqui.

- Me desculpa – disparei, ela pareceu confusa, então continuei rapidamente – me desculpa te afastar de mim, está sofrendo tanto quanto eu, deveríamos estar passando por isso juntas e eu fui muito egoísta para não notar em você – lanço um olhar para a cadeira vazia de sara.

- Querida, não tem o que se desculpar, cada um lida com o luto de uma forma diferente – ela aproximou sua cadeira da minha e se inclinou para acariciar o meu cabelo – eu sou sua mãe, estou aqui sempre que precisar e vou esperar o tempo que necessário até você estar pronta para conversarmos novamente.

Ela afastou o meu cabelo da frente do rosto e me olhou no fundo dos olhos, para que eu acreditasse que o que ela estava falando era verdade.

- Isso não é tudo que eu quero falar – digo quase desistindo e jogando tudo para o alto – eu acho que... – limpei a garganta e engoli em seco – acho que quero voltar para escola. Eu ia esperar o papai para dizer isso, mas fiquei com medo de desistir da ideia.

Olhos da minha mãe brilharam de felicidade e ela dá um beijo molhado na minha bochecha, isso significa um avanço de acordo com ela. Não vou destruir a esperança que ela tem em mim dizendo que essa decisão é por puro orgulho. Um desafio para aquelas palavras. Vou tentar provar para todo mundo que eu não sou tão frágil quanto eles pensam.

Do meu quarto escuto os passos pesados da minha mãe indo ate a cozinha para ligar pro meu pai. A sua voz está contida o máximo que pode, ela fala com cautela no telefone, com medo de que sua exaltação me faça mudar de ideia.

O que foi que eu fiz?

É o que fico me perguntando até cair no sono.

Acordo com o barulho da porta abrindo, é o meu pai, ele vai até a lateral da cama e se ajoelha, ele me dá um beijo na testa e sussurra,

- Estou orgulhoso devocê, Rebeca.

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