Um vento agreste soprava em volta de Ingleside como uma velha mulher lamuriosa. Era um daqueles dias do fim de Agosto, frios e húmidos que nos entristecem o coração, um daqueles dias em que tudo corre mal...o que na velha Avonlea se chamava um "dia de Jonas". O cachorro novo que Gilbert trouxera para as crianças tinha roido a perna da mesa da sala de jantar...a Susan descobrira que as traças tinham feito um banquete no armário dos cobertores...o gatinho da Nan tinha estragado os seus melhores fetos...o Jem e o Bertie Shakspeare toda a tarde tinha feito uma algazarra no sótão com panelas a servir de tambores...a própria Anne tinha partido uma lâmpada de vidro pintado. Mas de certa forma tinha-lhe agradado ouvi-lha quebrar! A Rilla estava com dor de ouvidos e o Shirley tinha umas borbulhas misteriosas detrás do pescoço, que preocupava Anne mas que Gilbert apenas olhara casualmente e dissera que não eram nada de especial. Claro que não era nada de especial. O Shirley era só um filho dele! E também não era nada de especial ele ter convidado os Trent para jantar na semana passada e só se ter lembrado de dizer a Anne na altura em que eles chegaram. Susan e ela tinham tido um dia muito atarefado e tinham pensado em comer os restos das outras refeições. E logo a senhora Trent que tinha fama de ser uma das melhores anfitriãs de Charlottetown! Onde é que estavam as meias do Walter, com o rebordo preto e biqueira azul? "Seria possivel, Walter, que por uma vez tu arrumasses uma coisa no sítio certo? Nan, eu não sei onde são os Sete Mares. Por amor de Deus, pára de fazer perguntas! Foi por isso que envenenaram o Sócrates. Já não o podiam ouvir."
O Walter e a Di ficaram parados a olhar para ela. Nunca antes tinham ouvido a mãe falar assim com eles. O olhar de Walter ainda irritou mais Anne.
"Diana, é preciso estar sempre a dizer-te que não enroles os pés dessa maneira ao banco do piano? Shirley, já deixaste a revista nova toda pegajosa com doce! E talvez alguém me consiga dizer onde foram parar os abajours das lâmpadas do tecto? "
Ninguém sabia...a Susan tinha-os tirado para os limpar...e Anne subiu para o quarto para se refugiar dos olhos tristes dos seus filhos. No seu quarto ela andou para cima e para baixo agitada. O que é que se passava com ela? Seria possivel que se estivesse a tornar numa daquelas criaturas embirrentas sem paciência para nada? Tudo a aborrecia ultimamente. Um hábito qualquer do Gilbert ao qual ela nunca ligara que a começava a enervar. Estava mais que farta daqueles deveres monótonos e intermináveis...mais que farta de só pensar nas necessidades da familia dela. Dantes tudo o que ela fazia em casa lhe dava prazer. Agora não lhe interessava o eu fazia. Sentia-se sempre como uma pessoa num pesadelo, a tentar correr dentro de água.
E o pior de tudo era que o Gilbert não se apercebia da mudança nela. Estava ocupado de noite e de dia e parecia não pensar em nada a não ser no trabalho. A única coisa que lhe tinha dito nesse dia ao almoço foi "passa-me a mostarda, por favor."
"Eu posso conversar com as mesas e as cadeiras, claro," pensou Anne amargamente. "Nós estamos a tornar-nos um hábito um para o outro...nada mais. Ele nem reparou que eu tinha um vestido novo ontem à noite. E há tanto tempo que não me chama miúda-Anne que já nem me lembro da última vez. Se calhar todos os casamentos são assim ao fim de um certo tempo. Ele toma-me por certa. O trabalho dele é a única coisa que o interessa agora. Onde é que está o meu lenço?"
Anne agarrou no seu lenço e sentou-se na sua cadeira para se torturar luxuosamente. O Gilbert já não a amava. Quando a beijava beijava-a mecanicamente...era um hábito. Todo o encanto tinha desaparecido. Lembrava-se de velhas piadas que os tinham feito rir, agora carregadas de tragédia. Como é que ela podia tê-las achado engraçadas? Monty Turner que beijava a mulher sistematicamente uma vez por semana...fazia memorandos para se lembrar. (Será que alguma mulher quer beijos assim?) Curtis Ames que tinha encontrado a mulher com um chapéu novo e não a tinha reconhecido. A senhora Clancy Dare que dizia "Eu não gosto muito do meu marido, mas sinto-lhe muito a falta quando ele não está." (Será que o Gilbert ia sentir a minha falta se eu não estivesse cá? Será que já chegámos a este ponto?) Nat Elliot que disse à mulher depois de dez anos de casamento, "já que queres saber estou farto de estar casado." ("E nós estamos casados há quinze anos!") Bem, talvez todos os homens fossem assim. Talvez a Miss Cornélia dissesse que sim. Depois de um certo tempo eram difíceis de segurar. ("Se o meu marido tiver que ser seguro não sou eu que o vou segurar!")Mas também, havia a senhora Theodore Clow que dissera orgulhosamente na Ladies' Aid, "Eu sou casada há vinte anos e o meu marido ama-me tanto como no dia do nosso casamento." Talvez ela se estivesse a enganar a ela própria. E ela parecia um bocado mais velha do que era. ("Será que eu já começo a parecer velha?") Pela primeira vez na sua vida os anos pareceram pesar-lhe. Foi até ao espelho e olhou criticamente para si própria. Haviam de facto alguns pés de galinha, mas só eram visíveis com uma luz forte. O queixo dela ainda era bem marcado. Sempre tinha sido pálida. O cabelo dela era forte e ondulado, e não tinha nem um fio branco. Mas será que alguém gostava realmente de cabelo ruivo? O nariz dela ainda era bonito, sem dúvida. Anne fez uma festa no seu nariz como a um amigo, lembrando-se de certas alturas na vida em que o nariz fora tudo o que lhe valera. Mas o Gilbert agora tinha o nariz dela como certo. Pouco lhe interessava se era esborrachado ou torto. O mais provável era ter-se esquecido que ela tinha nariz. Como a senhora Dare, se calhar sentia- lhe a falta se lá não estivesse.
"Bem, tenho que ir ver da Rilla e do Shirley," pensou Anne com tristeza. "Pelo menos eles ainda precisam de mim, pobres queridos. Porque é que fui tão rispida com eles? Oh, agora devem estar a pensar, "Que rabugenta que está a Mãe!"
Continuou a chover e o vento continuou a soprar. O barulho das panelas no sótão parou mas o barulho incessante de um grilo na sala quase deu com ela em doida. O correio do meio-dia trouxe duas cartas. Uma era de Marilla...mas Anne suspirou enquanto a dobrava. A letra de Marilla estava a ficar tão trémula e leve. A outra carta era da senhora Barret Fowler de Charlottetown que Anne conhecia vagamente. E a senhora Fowler queria que o Gilbert e a Anne lá fossem jantar na terça-feira seguinte às sete horas "para se encontrarem com a sua velha amiga Senhora Andrew Dawson, Christine Stuart de solteira."
Anne deixou cair a carta. Uma avalanche de velhas memórias invadiram- na...algumas delas pouco agradáveis. Christine Stuart de Redmond...a rapariga de quem disseram que Gilbert estava noivo...a rapariga de quem ela tivera tantos ciúmes...sim, ela admitia-o agora, vinte anos depois...ela tinha tido ciúmes...ela tinha odiado Christine Stuart. Ela não pensava em Christine há anos, mas lembrou-se dela nitidamente. Uma raparigaalta e pálida com grandes olhos azuis-escuros e uma grande cabeleira negra. E um certo ar de distinção. Mas com um grande nariz...sim, com um nariz grande. Bonita...oh, não se podia negar que a Christine for a bonita. Ela lembrava-se de ter ouvido há muitos anos que Christine fizera um bom casamento e tinha ido para o oeste.
Gilbert veio jantar à pressa...havia uma epidemia de papeira no Glen de cima...e Anne entregou-lhe a carta da senhora Fowler em silêncio. "Christine Stuart! Claro que vamos. Eu gostava de a ver," disse, com o primeiro ar de admiração que mostrava desde há semanas. "Pobre rapariga, ela também já teve alguns problemas. Ela perdeu o marido aqui há uns anos, sabias?"
Anne não sabia. E como tinha sabido Gilbert? Porque é que nunca lhe dissera? E tinha-se esquecido que na próxima terça feira era o seu aniversário de casamento. Um dia em que nunca costumavam aceitar convites porque iam sair só os dois. Bem, ela não o ia recordar. Ele podia ir ver a sua Christine se quisesse. Uma vez uma rapariga de Redmond dissera-lhe "Houve mais coisas entre o Gilbert e a Christine do que tu pensas, Anne." Ela tinha-se rido nessa altura...Claire Hallet era uma rapariga invejosa. Mas talvez tivesse havido qualquer coisa mais. Anne lembrou-se subitamente, com um arrepio, que pouco tempo depois do seu casamento ela tinha encontrado uma fotografia da Christine Stuart num livro de bolso do Gilbert. O Gilbert mostrar-se indiferente e comentara que se tinha perguntado várias vezes onde tinha ido parar a fotografia. Mas...seria uma daquelas coisas aparentemente sem importância que significam coisas importantes? Seria possível...que o Gilbert tivesse amado Christine? Seria ela, Anne a segunda escolha? O prémio de consolação?
"Com certeza que não...estou com ciúmes," pensou Anne, tentando rir-se da ideia. Era tudo ridículo. O que poderia ser mais natural do que Gilbert gostar da ideia de rever uma velha amiga de Redmond? E nada mais natural que um homem ocupado, casado há quinze anos, se esquecesse por vezes das datas e das estações e dos dias domês? Anne escreveu à senhora Fowler, aceitando o convite dela...e pôs a carta no correio três dias antes de terça-feira, desejando que alguém no Glen começasse a ter um bebé na terça à tarde por volta das cinco horas.
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Anne de Ingleside | Série Anne de Green Gables VI (1939)
Fiksi RemajaObra da canadense L. M. Montgomery.