Capítulo XXX

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Era a vez da Nan na ribalta...a vez da Nan adicionar uma história ás muitas que ainda se iriam passar em Ingleside ao longo dos anos. E enquanto vivesse, Nan iria corar ao lembrar-se dela, tinha sido tão palerma!

Nan tremia quando via Dovie balançar-se...mas ao mesmo tempo fascinava-a. Ela tinha a certeza que Dovie ia cair, e depois...Mas a Dovie nunca caia. Tinha sempre sorte.

Tudo o que a Dovie fazia ou dizia que fazia... provavelmente duas coisas muito diferentes, que Nan - criada em Ingleside onde nunca ninguém dizia outra coisa sem ser a verdade mesmo que fosse a brincar - era demasiado inocente e crédula para distinguir...tinha um grande fascínio paraNan.Dovie, que tinha onze anos e vivera em Charlottetown toda a vida sabia muito mais do que Nan, que só tinha oito anos. Charlottetown, dizia Dovie, era o único sitio onde as pessoas sabiam alguma coisa da vida. O que é que alguém podia saber, vivendo num sitio tão recôndito como o Glen St. Mary?

Dovie tinha vindo passar as férias a casa da tia Ella no Glen e ela e Nan fizeram-se amigas intimas apesar da diferença de idades. Talvez porque Nan admirasse Dovie, que lhe parecia quase crescida, e lhe dedicava uma adoração desmedida por aquilo que nela via...ou achava que via. Dovie por sua vez gostava do seu adorável e humilde pequeno satélite.

"Não há maldade nenhuma na Nan Blythe...ela só é um bocadinho mole," dizia ela à tia Ella.

Os adultos atentos de Ingleside não viam qualquer problema na Dovie..apesar de, como Anne recordava, a mãe dela ser prima dos Pye de Avonlea...e não levantavam objecções ao facto de Nan andar sempre com ela, apesar de Susandesconfiar um bocado daqueles olhos verdes com pestanas louras claras. Mas não parecia haver razão...a Dovie era educada, vestia-se bem, tinha boas maneiras e não falava demais. Susan não encontrava razões para a sua desconfiança e manteve-se calada. A Dovie regressaria a casa quando a escola recomeçasse e entretanto não havia necessidade de usar pentes finos neste caso.

Por isso Dovie e Nan passavam a maior parte do tempo juntas no cais, onde havia quase sempre um navio ou dois com as velas arriadas, e Nan quase não se avistou em Rainbow Valley nesse Agosto. As outras crianças de Ingleside não gostavam especialmente de Dovie, e não desperdiçaram afectos. Ela tinha feito uma partida ao Walter, a Di tinha ficado furiosa e dito "certas coisas". A Dovie gostava, ao que parecia, de pregar partidas. Talvez fosse por isso que nenhuma menina do Glen a procurava disputar com Nan.

"Oh, por favor, diz-me," pediu Nan.

Mas Dovie limitou-se a piscar o olho e disse que Nan era nova demais para saber certas coisas. E isso enlouqueceu Nan de curiosidade.

"Por favor, diz-me Dovie."

"Não posso. Foi-me dito em segredo pela tia Kate e ela morreu. Eu sou agora a única pessoa no mundo que sabe. Eu prometi quando ouvi que nunca o diria a ninguém. Tu depois contas...não és capaz de guardar segredo." "Não conto...de verdade!" exclamou Nan.

"As pessoas dizem que vocês em Ingleside contam tudo uns aos outros. A Susan fazia-te logo dizer."

"não fazia. Eu sei montes de coisas que nunca disse à Susan. Segredos. Eu digo-te os meus se tu me disseres o teu."

"Oh, eu não estou interessada nos segredos de uma menina pequena como tu," disse Dovie.

Um pequeno insulto! Nan achava que os seus pequenos segredos eram encantadores...que aquela velha cerejeira brava que ela tinha encontrado toda florida no bosque de abetos por trás do celeiro do senhor Taylor...uma fada branca imaginária que dormia num nenúfar do bosque...a imagem de um barco a entrar no porto puxado por cisnes brancos presos com correntes de prata...o romance que ela começava a imaginar em relação a uma linda senhora que vivia na casa dos MacAllistar. Eram todos muito mágicos e maravilhosos para Nan e ela sentia-se contente, depois de ter pensado nisso, por não os ter chegado a contar a Dovie.

Anne de Ingleside | Série Anne de Green Gables VI (1939)Onde histórias criam vida. Descubra agora