Capítulo XXXIII

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Anne, sozinha no seu quarto...porque Gilbert tinha sido chamado para uma consulta...estava sentada à janela para uns minutos de comunhão com a ternura da noite e saboreava o encanto etéreo do seu quarto iluminado pela lua. Diga-se o que se disser, pensava Anne, há sempre qualquer coisa de estranho num quarto iluminado pela lua. Toda a sua personalidade muda. Já não é tão amigável...tão humano. É distante e frio, e fechado sobre ele próprio. Quase que nos vê como intrusos.

Ela estava um pouco cansada pelo seu dia tão ocupado e tudo estava tão maravilhosamente sossegado agora...as crianças dormiam, Ingleside de novo em ordem. Não havia som nenhum pela casa a não ser um bater suave vindo da cozinha onde Susan amassava o pão.

Mas da janela aberta vinham os sons da noite, cada um deles conhecido e amado por Anne. Risos baixos elevavam-se do porto no ar parado.

Alguém cantava no Glen e pareciam as notas assombradas de uma canção há muito ouvida. Haviam caminhos prateados pela luz da lua sobre a água mas Ingleside estava coberta pelas sombras. As árvores murmuravam "velhos ditados obscuros" e uma coruja piava em Rainbow Valley.

"'Este Verão foi tão feliz!" pensou Anne...e depois lembrou-se com um pequeno salto do coração uma coisa que certa vez ouvira à Tia Kitty Escocesa do Glen de cima..."nunca se vive o mesmo Verão outra vez." Nunca exactamente o mesmo. Outro Verão viria...mas as crianças seriam um pouco mais velhas e a Rilla entraria para a escola..."e eu fico sem nenhum bebé," pensou Anne tristemente. Jem tinha agora doze anos e já se falava da "Admissão"...o Jem que ainda ontem fora um bebé na Casa de Sonhos. Walter estava cada vez mais alto e ela ouvira Nan chateando Di sobre um qualquer rapaz lá da escola; e Di tinha corado e atirado a cabeça ruiva para trás. Bem, era a vida. Felicidade e dor...esperança e medo...e mudança. Sempre a mudança! Não se podia evitar. Tinhamos que deixar partir o antigo e abrir o coração ao novo...aprender a amá-lo e depois deixá-lo ir a seu tempo. A Primavera, bela como é, tem que dar lugar ao Verão e o Verão tem que se perder no Outono. O nascimento...as núpcias...a morte.

Anne lembrou-se subitamente do Walter a perguntar o que se passara no funeral do Peter Kirk. Ela não pensava nisso há anos, mas não se esquecera. Ninguém que lá estivesse, ela tinha a certeza, podia ter-se esquecido. Sentada na penumbra iluminada pela lua ela recordou-se de tudo.

Tinha sido em Novembro...o primeiro Novembro que passaram em Ingleside...depois de uma semana de verão dos marmelos. Os Kirks viviam em Mowbray Narrows mas vinham à igreja do Glen e o Gilbert era médico deles; por isso ele e Anne foram ambos ao funeral.

Tinha sido, recordava, um dia suave calmo e cinza pérola. Tudo em volta deles erauma paisagem castanha e púrpura de Novembro, com remendos de luz do sol aqui e ali emcurvas e caminhos onde o sol brilhava por umabrecha aberta entre as nuvens. "Kirkwynd" estava tão próxima da costa que uma brisa de vento carregado de sal soprava por entre os sérios pinheiros das traseiras. Era uma casa grande, de ar próspero mas Anne sempre achou que o triângulo que terminava um dos lados do telhado parecia mesmo uma cara comprida, estreita e amarga. Anne parou para falar a um grupo pequeno de mulheres no rigido relvado sem flores. Elas eram todas boas mulheres trabalhadoras para quem um funeral não era uma excitação desagradável.

"Eu esqueci-me de trazer um lenço de assoar," dizia a senhora Blake. "O que é que vou fazer quando chorar?"

"mas tem que chorar?" perguntou secamente a cunhada dela, Camilla Blake. Camilla não gostava de mulheres que choravam com muita facilidade. "O Peter Kirk não te era nada e tu nunca gostaste dele."

"Eu acho que é uma questão de educação chorar num funeral," disse a senhora Blake muito séria. "Demonstra que temos sentimentos quando um vizinho nosso é chamado para a sua eterna morada."

Anne de Ingleside | Série Anne de Green Gables VI (1939)Onde histórias criam vida. Descubra agora