Quando o Gilbert e a Anne foram jantar com uns amigos a Charlottetown certa noite do fim de Maio Anne vestiu um vestido novo de um verde- claro debruado a prateado em volta do pescoço e dos braços; e ela levava o anel de esmeraldas do Gilbert e o colar de pérolas do Jem.
"Não tenho uma esposa linda, Jem?" perguntou o Pai orgulhoso.
O Jem achou que a Mãe estava muito bonita e que o vestido dela era lindo. Ficavam-lhe tão bem as pérolas na garganta branca. Ele sempre gostara de ver a Mãe arranjada, mas ainda gostava mais quando ela vestia um vestido esplêndido. Transformava-a numa outra pessoa. Não era de todo a Mãe.
Depois do jantar o Jem foi à aldeia fazer um recado à Susan e foi enquanto esperava na loja do senhor Flagg...com receio que a Sissy lá fosse como muitas vezes acontecia e fosse demasiado amigável...que se deu o choque...o choque despedaçante da desilusão que é tão terrivel para uma criança porque é tão inesperado e tão aparentemente inevitável.
Duas raparigas estavam em frente da montra de vidro onde o senhor Carte tinha os colares, as pulseiras e as redes para o cabelo.
"Aqueles fios de pérolas são tão bonitos..." disse a Abbie Russel. "Quase parecem verdadeiros," disse a Leona Reese.
E seguiram em frente, sem noção do que tinham acabado de fazer a um pequeno rapaz sentado na caixa dos pregos. Jem continuou lá sentado durante algum tempo. Estava incapaz de se mexer.
"O que é que se passa, filho?" perguntou o senhor Flagg. "Pareces um bocado murcho."
Jem olhou para o senhor Cárter com olhos trágicos. A sua boca estava invulgarmente seca.
"Por favor, senhor Flagg...aqueles...colares...têm pérolas verdadeiras, não têm?"
O senhor Flagg riu-se.
"Não Jem. Infelizmente não consigo comprar pérolas verdadeiras por cinquenta cêntimos, sabes. Um colar de pérolas verdadeiro como aqueles custava centenas de dólares. São só contas a imitar pérolas...muito boas, por sinal. Eu comprei-as na liquidação de uma loja...por isso é que as posso vender tão baratas. Normalmente custam um dólar. Só já tenho aquele...venderam muito bem."
Jem levantou-se do banco e saiu, esquecendo-se completamente do que a Susan lhe tinha pedido. Caminhou cegamente pela estrada cheia de neve e gelo. Por cima tinha um céu duro e escuro de Inverno; e havia o que a Susan chamava de "cheiro a neve" no ar, e uma fina capa de gelo sobre as poças. O porto jazia amuado e negro entre as suas margens vazias. Antes de Jem chegar a casa uma nuvem carregada de neve embranquecia por cima dele. Ele desejava que nevasse...até ficar enterrado e toda a gente ficasse enterrada em toneladas de neve. Não havia justiça no mundo.
O coração de Jem estava despedaçado. E não admitia que ninguém brincasse com o seu desgosto ou com a sua causa. A sua humilhação era profunda e completa. Ele tinha dado à mãe o que ele achava ser um colar de pérolas...e era só uma imitação. O que é que ela diria...o que é que sentiria...quando soubesse? Claro que ela tinha que saber. Nunca nem por um momento ocorreu a Jem pensar que ela não devia saber. Ela não deveria ser enganada mais tempo. Ela tinha que saber que as pérolas não eram verdadeiras. Pobre Mãe! Ela tinha ficado tão orgulhosa delas...não tinha ele visto o brilho orgulhosos nos seus olhos quando o beijara e lhe agradecera?
Jem entrou de mansinho pela porta de lado e meteu-se na cama, onde Walter já dormia profundamente. Mas Jem não conseguia dormir; ficou acordado até que a Mãe chegou a casa e foi ao quarto ver se ele e o Walter estavam bem tapados.
"Jem, querido, ainda estás acordado a esta hora? Estás doente?"
"Não, mas estou muito infeliz aqui, mãe querida," disse Jem, levando a mão ao estômago e acreditando firmemente tratar-se do coração.
"O que é que se passa, querido?"
"Eu...eu...tenho que lhe dizer uma coisa, Mãe. Vai ficar terrivelmente desiludida...mas eu não quis enganá-la, mãe, de verdade não quis."
"Mas com certeza que não, querido. O que é que foi? Não tenhas receio."
"Oh, Mãe querida, aquelas pérolas não são verdadeiras...eu pensava que eram...pensava mesmo..."
Os olhos de Jem estavam cheios de lágrimas. Ele não conseguia aguentar mais.
Se Anne teve vontade de rir não se viu nenhum sinal disso no seu rosto. O Shirley tinha batido com a cabeça naquele dia, a Nan tinha torcido um tornozelo e a Di tinha ficado sem voz por causa de uma constipação. Anne tinha beijado e acalmado, e enrolado ligaduras; mas isto era diferente...isto precisava de toda a sabedoria secreta das mães.
"Jem, eu nunca pensei que tu achasses que eram pérolas verdadeiras. Eu sabia que não eram...pelo menos na realidade. Porque noutro sentido são as coisas mais reais que já me deram. Porque houve amor e trabalho e sacrifício nelas...e isso torna-as mais preciosas do que todas as pedras preciosas que foram desenterradas no mundo para as rainhas usarem. Meu querido, eu não ia trocar as minhas lindas contas pelo colar de que falavam num jornal que li ontem à noite, que foi dado por um milionário à noiva dele e que custou meio milhão de dólares. E isso mostra o quanto o teu presente significou para mim, mais querido dos filhos pequenos. Sentes-te melhor agora?"
O Jem ficou tão feliz que se envergonhou. Tinha medo de ser infantil por estar tão feliz. "Oh, a vida é outra vez suportável," disse cauteloso.
As lágrimas tinham desaparecido dos seus olhos brilhantes. Estava tudo bem. Os braços da mãe envolviam-no...a Mãe gostava mesmo do colar...mais nada importava. Um dia, ele ia dar-lhe um que custasse não meio milhão, mas um milhão inteiro de dólares. Entretanto, ele estava cansado...a cama era quente e confortável...as mãos da Mãe cheiravam a rosas...e ele já não odiava a Leona Reese.
"Mãe querida, fica tão bonita com esse vestido," disse já muito ensonado. "Doce e pura...pura como o cacau de Epp's."
Anne riu-se enquanto o abraçava e pensava numa coisa ridícula que tinha lido nesse dia num jornal de medicina, assinado pelo doutor V.Z. Tomachowsky. "Você nunca deve beijar os seus filhos sob pena de lhes desencadear o complexo de Jocasta." Ela tinha-se fartado de rir com aquilo, e ficado um pouco zangada também. Agora só sentia pena do escritor. Pobre, pobre homem! Porque o V.Z. Tomachowsky era um homem. Mulher nenhuma escreveria algo tão palerma e tão malvado.
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Anne de Ingleside | Série Anne de Green Gables VI (1939)
Fiksi RemajaObra da canadense L. M. Montgomery.