O mês de Abril veio em bicos de pés nesse ano com sol e ventos suaves por uns dias; e depois uma tempestade de neve de noroeste deitou um tapete branco sobre o mundo novamente. "A neve em Abril é abominável," disse Anne. "É como uma bofetada na cara quando esperávamos um beijo." Ingleside ficou debruada a pingente de gelo e durante duas longas semanas os dias foram frios e as noites difíceis de passar. Então a neve lá foi desaparecendo a resmungar e quando se ouviu dizer que se vira um pisco no vale Ingleside respirou fundo e acreditou que o milagre da Primavera se repetira novamente.
"Oh, Mamã, cheira a Primavera hoje," exclamou Nan, cheirando deliciada o ar húmido da manhã. "Mamã, a Primavera é uma altura tão excitante!"
A Primavera experimentava os primeiros passos nesse dia...como um bebé adorável que começa a andar. Os padrões invernais de árvores e campos começavam a ficar carregados de salpicos de verde e Jem trouxe mais uma vez as primeiras flores de Maio. Mas uma senhora tremendamente gorda, afundando-se numa cadeira em Ingleside suspirava e dizia que as primaveras agora não eram tão agradáveis como quando ela era nova.
"Não acha que a mudança está em nós...e não na Primavera, senhora Mitchell?" disse Anne com um sorriso.
"Talvez esteja. Eu bem sei que estou mudada. Ninguém diria ao olhar para mim agora que fui uma das raparigas mais bonitas desta zona."
Anne reflectiu que com certeza que não. O cabelo fino e ralo, cor de rato por debaixo do chapéu da senhora Mitchell e do longo véu de viúva estava salpicado de cinzento; os seus olhos azuis inexpressivos eram gastos e vazios; e chamar queixo ao duplo queixo dela era uma questão de caridade. Mas a senhora Antony Mitchell sentia-se bastante satisfeita consigo própria nessa altura porque mais ninguém em Four Winds tinha um guarda-roupa mais fino. O seu volumoso vestido negro era de crepe até aos joelhos. Nesses tempos usava-se luto como por vingança.
Anne foi poupada à necessidade de responder porque a senhora Mitchell não lhe deu oportunidade.
"As minhas canalizações avariaram-se esta semana...têm uma fuga...por isso vou à aldeia esta manhã para pedir ao Raymond Russel que mas venha arranjar. E pensei cá para comigo, 'Já que lá vou, posso pedir à senhora Blythe que me escreva o obituário para o Anthony.'"
"O obituário?" disse Anne incrédula.
"Sim...aquelas coisa que se põem nos jornais sobre as pessoas que morrem, sabe," explicou a senhora Mitchell. "Eu gostava que o Anthony tivesse um bom...uma coisa fora do vulgar. A senhora escreve, não é?" "De vez em quando escrevo umas histórias," admitiu Anne. "Mas uma mãe ocupada não tem muito tempo para isso. Eu tinha grandes sonhos aqui há uns anos, mas receio que nunca vá aparecer no Quem é Quem, senhora Mitchell. E nunca escrevi um obituário na vida."
"Oh, não são dificeis de escrever. O velho tio Charlie Bates lá do pé de mim escreve a maior parte deles lá no Glen de baixo, mas ele não é nada poético e eu gostava de ter uma poesia no do Anthony. Ele sempre gostou tanto de poesia. Eu fui lá vê-la dar aquela palestra sobre ligaduras no Instituto do Glen na semana passada e pensei para mim, 'Uma pessoa que fala assim tão bem deve escrever um obituário mesmo poético A senhora vai fazer isso por mim, não vai, senhora Blythe? O Anthony ia gostar tanto. Ele sempre a admirou. Ele disse uma vez que quando a senhora entrava numa sala fazia as outras mulheres todas parecerem 'vulgares e indistintas'. Ele ás vezes falava de uma maneira poética, mas não era por mal. Eu tenho lido muitos obituários...tenho aqui uns poucos de recortes...mas não gostei de nenhum deles. Ele costumava rir-se tanto deles. Mas já é altura de lho fazer. Já morreu há dois meses. Ele morreu lentamente mas não sofreu. Isto de morrer na Primavera não é muito conveniente, senhora Blythe, mas eu tentei dar o meu melhor. O tio Charlie vai ficar furioso por eu pedir a outra pessoa que faça o obituário do Anthony, mas eu não me importo. O Tio Charlie fala muito bem, mas ele e o Anthony nunca se deram muito bem por isso não quero que seja ele a escrevê-lo. Eu fui esposa do Anthony...uma esposa dedicada e fiel durante trinta e cinco anos...trinta e cinco anos, senhora Blythe,"...como se tivesse medo que Anne pensasse que foram apenas trinta e quatro...," e vou-lhe arranjar um obituário que ele gostasse nem que corra meio mundo. Foi o que me disse a minha filha Seraphine, ela casou para Lowbride, sabe...Seraphine é um nome bonito, não é?...eu copiei-o de uma lápide. O Anthony não gostou...ele queria que ela se chamasse Judith como a mãe dele. Mas eu disse que era um nome muito solene e ele fez-me a vontade. Ele não gostava de discussões...apesar de lhe chamar sempre Seraph...mas onde é que eu ia?"
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Anne de Ingleside | Série Anne de Green Gables VI (1939)
Novela JuvenilObra da canadense L. M. Montgomery.