Fragmento

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- 01 de Outubro de 1999 -
Sexta-feira, 10:34 a.m.
Anna - 10 anos.
O quarto estava escuro, não haviam janelas, tubulações e tinha apenas uma porta, a qual estava sempre trancada.
Hoje era o dia de seu aniversário de dez anos, a garota acordara animada e estava ansiosa para a visita diária de seu pai. Arrumara a cama e deixara tudo em ordem; havia decorado onde todos os móveis estavam, então mesmo que estivesse um breu imenso, ela saberia aonde estava.
O barulho da porta sendo destrancada ecoou por todos os quatro cantos do quarto, fazendo a pequena se levantar e se posicionar de frente para a silhueta do homem, que estava envolto da luminosidade do corredor. Acendeu as luzes do quarto e seus olhos foram tomados pela claridade, a fazendo fechá-los com força.
- Já está de pé, isto é ótimo. - fechou a porta atrás de si após entrar; carregava uma maleta preta, que colocou sobre uma mesa e a abriu, revelando algumas taças de vidro e um triângulo. - Vamos começar com seu treinamento.
A garota se aproximou do velho, parando ao seu lado e observando todos os materiais que trazia consigo na maleta. Ela estava animada demais para treinar naquela manhã, afinal, era seu aniversário, seu pai não poderia ter esquecido disso, não é?
- Ahn… Papai? - chamou receosa. - Você sabe que dia é hoje?
- É claro que sei, é o dia em que começaremos com uma medicação mais forte, a antiga já não está mais fazendo efeito. - a cada palavra a feição de Anna se entristecia um pouco mais, e uma onda de tristeza a tomou pelos ombros.
- Hoje é o dia do meu aniversário, como o senhor não se lembra? - comentou entristecida, entrelaçando seus dedos.
- Ora Anomalia, não tenho tempo para lembrar de eventos inúteis como este. Temos muito trabalho pela frente. - posicionou as taças uma ao lado da outra. - Agora, se concentre no barulho do triângulo, quero que tente controlar seus poderes ao máximo. - bateu contra o objeto em sua mão, fazendo um barulho ecoar pelo quarto, entrando nos ouvidos da menina, que sentia seu corpo começar a esquentar.
Ela não tinha o controle de seus poderes; algo que seu pai insistia para ela ter. Agiam de forma independente, irreverente, por conta própria.
Fechou os olhos e se concentrou, e então duas taças se quebraram, a assustando.
- De novo! - ordenou Reginald, com a voz ríspida que sempre trazia carregava nas cordas vocais.
Mais duas taças se quebraram, e então a menina sentiu seu rosto ardido e quente; seu pai acabara de desferir um belo tapa. Levou as mãos ao local que agora estava vermelho e latejando, com lágrimas inundando seus olhos.
- Se concentre Anomalia! Ou esse treinamento não servirá de nada! - bateu novamente no triângulo, e aquele barulhinho já estava irritando a garota, que fechou os punhos e cerrou os olhos com força, sentindo seu corpo pegar fogo.
As vidrarias dos armários que estavam em volta deles começaram a se quebrar, um por um, até não sobrar nenhum caco de vidro se quer; haviam virado átomos de vidro, um simples pó. O monóculo que Reginald sempre levava consigo estava igualmente quebrado, e em sua feição uma carranca aborrecida trazia à tona a bobagem que tinha feito; iria passar bons dias de castigo.
- Desculpa papai… - começou a se justificar, mas foi cortada quando Sr. Hargreeves levantou a mão, indicando a ela parar de falar.
- Já me cansei das suas tolices. Se não leva isso a sério, então teremos que pedir a ajuda de mais alguém. - se virou e abriu a porta, saindo pela mesma e deixando-a sozinha. A luz ainda estava acesa.
Sir Reginald Hargreeves subiu as enormes escadarias e saiu do porão, trancado-o com os cadeados e barras de aço.
As sete crianças corriam pela enorme quintal, enquanto Grace estava sentada em um dos bancos lendo algum jornal. Número 1 e Número 2 brigavam por alguma bobagem; eles quase nunca se entendiam e estavam sempre discutindo por qualquer coisa que fosse.
Na porta de entrada a mulher elegante com sapatos vermelhos chamativos estava ao lado de Pogo observando tudo ao seu redor, enquanto carregava consigo uma grande maleta.
Ao se aproximar, Reginald fez um breve cumprimento e a guiou até a sala do subsolo, onde a garota o aguardava com ansiedade.
- Trouxa o que lhe pedi? - questionou o velho, abrindo as portas do porão para que pudessem descer.
- Mas é claro que sim, ou você acha que não cumpro as minhas promessas? - sorria de forma arrogante. - Mas preciso saber se o que irá me oferecer vale todo o esforço que tive para conseguir isto. - ergueu a maleta até a altura do rosto.
- Espere e verá você mesma, senhorita Handler. - Reginald abriu a porta do quarto e a garota o olhou animada, mas desmanchou o sorriso assim que viu a mulher ao seu lado.
A verdade é que Anomalia jamais tinha visto nenhuma outra pessoa sem ser seu pai, jamais saíra daquele quarto e muito menos teve a chance de respirar o ar livre, ou conhecer seus outros irmãos - que seu pai insistia em falar sobre, afirmando que ela poderia se juntar a eles assim que tivesse total domínio de seus poderes.
Sua mãe, Anna Adams - uma mulher inglesa que, assim como as outras quarenta e duas, deu a luz à sua filha sem ao menos estar grávida -, tinha a entregado para Sr. Hargreeves com apenas três dias de vida.
Mesmo não sabendo ao certo o que ela tinha de errado em relação às outras crianças, Anomalia seguia todas as regras que seu pai impunha, fazia todos os treinamentos sem reclamar e tomava os medicamentos, mesmo sentindo que seu corpo iria entrar em erupção cada vez que uma agulha perfurava seu corpo.
Vez ou outra sentia que seu pai tinha medo dela, a olhava com pavor por trás das pálpebras e via suas mãos tremerem cada vez que algo saia de seu controle. Já chegou a machucar o velho algumas vezes, mas nenhuma jamais foi de propósito.
Ela queria agradar seu pai, queria sair daquele confinamento e conseguir, pela primeira vez na vida, ter algo de normal dentro de si.
- Olá querida! - se aproximou da garota em passos lentos, e se abaixou na sua frente. - Nós vamos ser grandes amigas daqui para frente.
Anomalia via maldade em seus olhos, não confiava naquela mulher e seus instintos era quase sempre cem porcento corretos. Sorriu amarelo em sua direção e assentiu com a cabeça. Se seu pai estava por trás daquilo, então teria que confiar nela, teria que ser sua amiga e pegar em sua mão que agora estava estendida em sua direção.
Um choque passou por todas as suas terminações nervosas assim que seus dedos tocaram na mão áspera de Handler. Um pressentimento ruim a corroía por dentro e num ato involuntário puxou sua pequena mão com força, se afastando até o outro extremo da sala que misteriosamente estava mais apertada.
Queria gritar, sair correndo implorando por ajuda; queria fazer as vontades de seu pai para poder sair dalí o mais rápido possível, então se sentou em sua cama e perguntou, encolhendo os ombros.
- O que vão fazer? - notou que o olhar de Handler se iluminou mais com sua pergunta. Colocou a maleta que carregava na frente da garota e a abriu, relevando alguns frascos com líquidos das mais variadas cores e seringas de todos os tamanhos. Seu corpo frágil foi tomado por um medo desconhecido quando notou que ela seria alvo de um experimento que nem mesmo seu pai tinha certeza da eficácia.
Se encolheu mais em sua cama e abraçou seus joelhos.
O velho andou em sua direção e pegou uma das seringas e a pequena agulha brilhou quando foi erguida. A encheu com um líquido vermelho.
- Vou precisar que seja forte agora. - se sentou ao lado da filha, que o encarava com olhos arregalados e apavorados. - Pode fazer isso?
Balançou a cabeça concordando e Handler ficou ao seu lado, segurando seu braço esquerdo.
Sentiu a agulha perfurando sua pele frágil e seu corpo inteiro foi tomado por uma dor indescritível.
Começou a convulsionar e sentia a morte se aproximando lentamente, como o sopro de uma brisa leve.
Seguravam seus braços e pernas enquanto sua garganta forçava um grito suplicando ajuda. Não queria morrer.
Não queria morrer.
Não queria morrer.
E então tudo passou em câmera lenta.
Sentiu todas as partículas de seu corpo explodirem em milhões de pedacinhos e as duas pessoas ao seu redor voaram longe, batendo as costas com força contra as paredes no quarto.
E naquele instante Anomalia percebeu que, mesmo que injetassem todos os medicamentos existentes em seu corpo, jamais teria controle dos demônios que apossavam seu corpo.
Eram famintos e sugavam sua alma.
Eram incontroláveis...

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Anomalia | Number FiveOnde histórias criam vida. Descubra agora