Capítulo 2 - O Crivo Assustador

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          Noite clara de verão. Esmeralda perdera o sono. A insônia, às vezes, amava a companhia da garota. Deitada em sua cama, com o corpo completamente relaxado, ela olhava a lua e as estrelas através da janela. Daqui a pouco já seria hora de levantar, se vestir, tomar um café e ir de encontro a mais um dia imersa no calor da cidade vazia. Ela suspirou.
          Às vezes ela parecia não ter feito progresso algum no seu tratamento. Às vezes, ela sabia que aquilo era bem melhor do que o sentimento de desespero, de vazio, de morte. Qualquer tédio era melhor do que não sentir nada. Qualquer dor era melhor do que o desespero de uma crise intensa de pânico.
          Passaram-se bons minutos com a menina ali, absorta em seus pensamentos. O ano havia recém começado e já estava na hora dela se planejar, mas por onde começar? O ano anterior havia sido um desastre, mas ela ainda não tinha exatamente a fórmula para este ano. Quando se deu conta, os primeiros raios de sol já trespassavam o vidro de sua janela.
          Ela girou o rosto e passou os olhos por todo o seu quarto. Que bagunça... Mas que preguiça de arrumar também, pensou. Tirou o lençol de cima de si e sentou na cama. Tateou o chão com os pés até conseguir calçar os chinelos e, com a moleza idêntica à de quem recém acordara, se arrastou para o banheiro. Ligou a luz, fechou a porta e se olhou no espelho. Os cabelos longos, ondulados e de cor verde bem forte estavam desgrenhados, mas pelo menos estavam bem hidratados.
          Tirou a escova da gaveta e penteou-se enquanto observava sua pele clara, as sardas sob os olhos, os lábios quebradiços e pálidos, as olheiras fundas de quem não dormira. Escovou os dentes e então se olhou novamente. A água ajudara um pouco seus lábios finos.
          De volta ao quarto, escolheu a roupa do dia: um short roxo e uma camiseta de banda vermelha. Nos pés, All Star. E aí foi obrigada a se olhar novamente no espelho.
          — Hoje vai ser diferente. Hoje vai dar tudo certo. — Falou tentando passar confiança para si mesma, mas é um pouco difícil se enganar quando não se acredita muito naquilo.
          Disfarçou as olheiras com maquiagem, borrifou seu perfume pelo corpo, pegou sua bolsa a tira colo e saiu pra rua esquecendo-se completamente de tomar o café-da-manhã. Era cedo demais para qualquer um estar acordado mesmo e ficar sozinha naquela casa era... deprimente.
          Desceu a rua até uma praça.  O fluxo de carros não era tão intenso, ela ainda podia ouvir os passarinhos cantando. Sentou-se em um banco e observou o ponto de taxi a sua frente. Esmeralda possuía traços delicados, bem femininos. Parecia uma garotinha, uma princesa indefesa. Mas desconstruiu essa imagem ao puxar um maço de cigarros do bolso e acender um deles, colocando-se em uma pose de bastante atitude para fumar.
          — Me dá um cigarro? — Falou uma voz firme e feminina ao pé do seu ouvido, de modo a dar-lhe um susto tão grande que a fez perder a compostura. Esmeralda olhou pra trás, com os olhos verdes arregalados e sentindo o coração na boca, e deparou-se com uma mulher poucos anos mais velha que ela, de cabelos longos, lisos e platinados, que se dobrava de tanto rir da reação assustada da menina.
          — Olha, moça, eu sei que eu sou nova, mas justamente por isso você não pode me dar um susto desses, viu? Eu ainda não tenho idade o suficiente pra ter vasos coronários secundários e me salvar de um infarto.
          — Ah, me desculpe, querida. Posso garantir que minha intenção não era matar você.
          Esmeralda voltou a se ajeitar no banco enquanto a mulher fazia a volta e sentava ao seu lado. Ela possuía um corpo esguio, forte, bonito. Esmeralda tirou do bolso o maço e o isqueiro e entregou na mão da mulher, que pegou um para si e, após acendê-lo, devolveu tudo para a menina.
          Fumaram quietas por alguns minutos, ambas olhando para os táxis a sua frente, ouvindo o som dos carros misturar-se com o cantar dos pássaros. Esmeralda adorava esses pequenos momentos do dia. Era só por isso que fumava.
          — Sabe... — A moça mais velha interrompeu o silêncio de uma maneira sutil. — A natureza é muito forte. É sábia também. Ela sim conhece o equilíbrio das coisas.
          — O ser humano acha horrível quando catástrofes naturais acontecem e matam milhares. Insistem em dizer que a natureza está se vingando. Ela não é vingativa, ela só é... mais forte que a civilização. Além disso, ela é tão maltratada! Ela só responde a altura.
          A mulher balançou a cabeça, apoiando a ideia. Era irônico falar sobre isso soltando fumaça como uma chaminé. Franziu o cenho e, antes de dar a última tragada no seu cigarro (ela fumava rápido, Esmeralda notou), comentou:
          — Você deveria dormir um pouco, Esmeralda Jones. Você vai precisar de toda a sua energia.
          — Por um segundo Esmeralda achou que tivesse ficado louca. Nesse segundo, foi como se o tempo parasse para ela. Com um certo delay, seu cérebro enfim conseguiu assimilar a realidade, e enquanto a mulher se levantava Esmeralda apressou-se a perguntar:
          — Minha energia? Pra que? Como você sabe que eu não dormi? E como sabe o meu nome? Eu não sei o seu!
          Uma brisa bateu e fez esvoaçar lindamente o cabelo branco enquanto os lábios da mulher desenhavam um sorriso tranquilo e satisfeito.
          — Sofia. Meu nome é Sofia. — E, como num piscar de olhos, desapareceu, evanescente.

EsmeraldaOnde histórias criam vida. Descubra agora