Introdução;

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Pov Harry

Lembro-me como se fosse hoje - não que tivesse escolha.

Foi no ano de 1981. Eu tinha seis anos quando fui de urgência para o hospital por ter comido uma quantidade astronómica de queijo. A Dona Lúcia, a empregada da escola que nesse dia levava uma camisola cor-de-rosa com um brilhante que quase encandeava a vista, veio comigo na ambulância e ficou ao meu lado até os meus pais chegarem.

A minha mãe entrou de rompante no quarto do hospital, porque ela só sabe entrar assim em tudo que é lugar - como se toda a sua vida se resumisse à tarefa de abrir portas com determinação - e abraçou-me com força, repreendendo-me pelo sucedido. O meu pai vinha logo atrás, camisa bem engomada, nó da gravata irrepreensível, postura de quem está na vida como numa reunião de negócios. Lembro-me de pensar que se os meus pais fossem bebidas, ela era gasosa e ele vinho tinto. Um equilíbrio um tanto estranho, mas ainda assim funcional.

- Então Harry, gostas muito de queijo... - Constatou o médico assim que entrou no quarto. Trazia uma prancheta azul e o estetoscópio ao pescoço e eu pensei que poderia vir a ser médico um dia mais tarde, e salvar miúdos como eu de perigosas ingestões de queijo fatiado.

- Não, na verdade detesto queijo.

Vi a minha mãe a agitar a cabeça em sinal de confirmação, não fosse ela que me preparava as "mistas" só com fiambre [=Presunto brasileiro] todos os dias para levar para a escola.

- Então porque o comeste? - Perguntou o médico, com aquela curiosidade típica dos médicos que procuram o mínimo deslize para nos enfiarem numa categoria de diagnóstico qualquer.

- Porque a Lucy da turma B disse que quem comia muito queijo ficava esquecido. - Confessei, encolhendo os ombros perante uma situação que me parecia para lá de óbvia.

Lembro-me da forma como as sobrancelhas do médico se uniram numa expressão confusa e pensativa e como se afastou para falar a sós com os meus pais. Minutos depois, entrava no quarto um outro médico, este sem estetoscópio, apenas com uma placa por cima do bolso da camisa a dizer "Dr. Popper". Disse-me que estava ali para ter uma conversa comigo e que podia confiar nele, pois não iria contar nada que lhe confessasse aos meus pais: pela conversa, como já tinha visto num filme, cheirou-me a psicólogo.

- Eu sei o que você é. É um psicólogo...e vai usar o que eu lhe contar para estudar aquilo que está dentro da minha cabeça. - Comentei com superioridade, usando os meus poderosos conhecimentos televisivos em meu favor.

- Oh! - Exclamou, admirado. - E há muita coisa dentro da tua cabeça?

Nesse momento lembro-me de ter ficado em silêncio por algum tempo antes de responder:

- Pelos vistos sim, porque nem os 13 queijos ajudaram.

Ele ponderou a resposta com cuidado antes de devolver a conversa.

- Então Harry, queres esquecer algo... - Comentou ele, cruzando a perna e curvando-se sobre mim como se quisesse garantir que tinha toda a sua atenção.

- Às vezes queria esquecer tudo, mas se pudesse escolher apenas uma coisa, aceitaria de bom grado. - Respondi rapidamente. Na altura ainda não tinha consciência de que a minha capacidade de eloquência era ridiculamente superior à de qualquer criança com 6 anos, não porque eu fosse sobredotado ou algo do género, mas simplesmente porque a minha incapacidade de esquecer qualquer diálogo que me chegasse aos ouvidos fazia com que reproduzisse as frases dos adultos, acabando por falar como eles.

O psicólogo olhou-me com desconfiança e tomou algumas notas no seu pequeno caderno.

- Se pudesses escolher algo para esquecer, o que seria? - Perguntou ele, curioso.

- O dia da morte da avó Laureen. - Respondi sem pensar duas vezes.

Ele fez uma pequena pausa como quem mostra respeito pela memória que eu inutilmente pretendia esquecer, e prosseguiu.

- Quando foi que ela morreu?

- Há dois anos atrás. - Fitei os lençóis brancos não porque precisasse de fazer um esforço para me concentrar nas recordações, mas para afastar as lembranças que começavam a surgir com uma nitidez anormalmente perfeita. - No dia 14 de Julho de 1979, às 15:35.

O Doutor Popper olhou-me sem esconder a surpresa mas recompôs-se rapidamente.

- Tinhas 4 anos, portanto. - Concluiu, escrevinhando rapidamente num bloco de notas. - Podes contar-me o que te lembras desse dia, Harry?

E eu contei.

Contei como estava um dia soalheiro de verão, como a minha mãe fazia tartes na cozinha e por isso cheirava a morangos e a relva cortada ao mesmo tempo. De todas as coisas que me lembro, os cheiros são sempre as mais intensas. Contei cada pormenor mais insignificante do meu dia, como a cor das meias do meu primo, a forma como as patas do gato batiam na madeira e faziam um som acolhedor, a maneira como o meu pai digitava nas teclas do portátil, sentado num banco do jardim, tão compenetrado que parecia estar a cair para dentro do ecrã.

- Hm... Harry...talvez devêssemos fazer uma pausa e ...

Ignorando-o, continuei a contar até ao momento em que entrei no quarto da avó Lau com um tabuleiro de chá e bolachas de manteiga e ela estava a dormir na cadeira de baloiço. Os lábios gretados curvavam-se numa espécie de meio sorriso, e recordo-me de ter pensado que essa é a expressão das pessoas que guardam segredos bons.

- Talvez ela estivesse a sonhar com gatos. Ela sempre gostou deles. Então eu peguei na mão dela e estava fria como a neve...

- Harry, está bom, está bom. - Disse ele, ligeiramente perturbado com o volume de informação. Visto em perspetiva, devo ter falado durante mais de duas horas sem parar. - Consegues lembrar-te do que jantaste há quatro quintas-feiras atrás? - Perguntou ele, num misto de preocupação e fascínio.

- Consigo lembrar-me do que jantei em todas as quintas-feiras da minha vida, Doutor Popper, acha que o queijo pode resolver isso?

*

Toda a gente quer ser excepcional.

Todos ambicionamos ter uma caraterística que ressalte no meio de todas as outras e que nos garanta a sensação confortável de que não somos uma cópia do conteúdo de alguém criado antes de nós. É uma espécie de febre moderna pela diferença: só fazemos sentido quando acreditamos que somos um num milhão, e que ninguém, dos biliões de pessoas que há no mundo, pode pensar no mesmo modo que nós, sentir do mesmo modo que nós, agir do mesmo modo que nós.

Mas aqui está o segredo: ninguém quer mesmo ser excepcional.

Porque é doloroso ser diferente. É doloroso saber que estamos estragados. É doloroso saber que ninguém, dos biliões de pessoas que há no mundo, pensa no mesmo modo que nós, sente do mesmo modo que nós, age do mesmo modo que nós.

Mesmo antes de ele responder eu vi a resposta nos seus olhos, e ainda hoje, 34 anos depois, eu não consigo não lembrar a forma como eles me mostraram que tudo aquilo que há na minha cabeça, não há na de mais ninguém.

É doloroso ser excepcional, e é duplamente doloroso não poder esquecê-lo.

*

N/A: Têm surgido algumas dúvidas em relação ao queijo, então passo a explicar: é um costume aqui em Portugal dizer que quem come muito queijo fica esquecido... é uma espécie de expressão. Quando a gente não se lembra de algo as pessoas dizem "Andas a comer muito queijo". 

Espero que estejam a gostar! 

Mil beijinhos*


(Un)forgettableOnde histórias criam vida. Descubra agora