Duas noites praticamente sem dormir. Era exatamente disso que eu precisava. Perfeito. Não preciso nem me virar na cama para saber que ainda está escuro lá fora e não quero pegar o celular para ver as horas. Da última vez que olhei, eram três da manhã. E antes disso, uma e quarenta. E ainda antes, meia noite e meia. Não tem nada pior que esse sono picado e é claro que minha insônia atacou com tudo bem agora que eu preciso dormir e descansar para ver se esse excesso de poder vai embora logo.
Me levanto e vou para a cozinha. Melhor já arrumar alguma coisa para comer, e estar pronta para sair assim que amanhecer... Não que eu faça a menor ideia de para que sair. Considerando o inferno que os bairros altos estavam ontem, com todo mundo tenso e esperando alguma coisa acontecer a qualquer instante, talvez ficar em casa seja uma opção melhor. Menos estressante, pelo menos.
Coloco a frigideira no fogo baixo enquanto passo manteiga no pão de dois dias atrás. Eu tinha certeza que Zeli-Amare ia atacar assim que os emissários fossem embora - até porque, pelo que Nai comentou sobre a tal reunião, eram emissários de mais de uma cidade e saíram aparentemente satisfeitos. Zeli-Amare não pode se dar ao luxo de esperar até qualquer tipo de aliança envolvendo Raivenera ser consolidada. Não por uma questão de poder de fogo, mas simplesmente por uma questão de reputação. É muito mais fácil esmagar uma grande família e uma cidade do que três ou quatro - e esconder o que foi necessário fazer depois.
Coloco o pão com manteiga aberto na frigideira. Pelo cheiro de café que está chegando aqui, já devem ser umas quatro e meia da manhã. É mais ou menos esse o horário que o pessoal que trabalha na cidade central começa a sair.
Eu odeio isso. A espera, ficar sem saber o que está acontecendo, quando vai acontecer alguma coisa... Isso é muito pior do que a correria louca de um lado para o outro de antes.
Desligo o fogo, pego meu pão e vou para a sala. É, olhando pela janela aqui, ainda não está nem perto de amanhecer.
Dou uma mordida no pão e paro, encarando o bastão que ainda está em cima da mesa. Eu nem encostei nele desde que Natasha foi embora, anteontem. Mas agora... As marcas nos meus braços já pararam de arder e quase não estão mais vermelhas. Até aquela sensação meio elétrica do poder desapareceu ontem, no fim da tarde. Talvez Natasha tenha exagerado. O tipo de poder que ela estava falando é impossível - ou deveria ser. Pelo menos para uma pessoa humana. Pode ser só um caso de que ela falou tempo a mais por garantia, porque não tem como ter certeza de como o organismo humano reagiria a alguma coisa assim.
Respiro fundo e pego o bastão.
Nada.
Solto o ar devagar, encarando o bastão na minha mão. Não é bem "nada". Tem uma sensação de formigamento que é nova, mas só isso. Nada como quando voltei de Raivenera e só de pegar no bastão ele já estava começando a brilhar.
Alguém grita.
Corro para a janela e olho para baixo. Nada. Nessas horas sinto falta do meu apartamento velho, antes disso tudo começar. Eu tinha uma vista muito melhor das ruas lá embaixo, mesmo que isso quisesse dizer que tinha muito mais fumaça em casa.
Me debruço melhor na janela quando escuto outro grito. Tem luzes se acendendo nas janelas dos prédios que consigo ver, mas não tem nada de diferente. Só a rua praticamente sem movimento de quatro e alguma coisa da manhã.
Mais alguém grita, mas dessa vez é em uma das janelas mais para cima.
Merda.
Olho para alto. Ainda está escuro, mas a lua está no céu, mesmo que ela não ilumine praticamente nada aqui. E o luar é o suficiente para ver uma sombra passando pela parede dos prédios.
Fecho a janela com força e corro de volta para o meu quarto. Obrigada, insônia. Muito obrigada. Por que se não fosse por causa dela, eu provavelmente não ia nem saber que Zeli-Amare estava avançando - porque não tem como isso ser outro grupo de emissários. Não a essa hora.
Como é que vou chegar no castelo a essa hora? Eu devia ter ficado lá. No mínimo, deveria ter ido para lá ontem, depois que os emissários foram embora.
Visto a primeira roupa que acho, jogo o bastão dentro da mochila e pego meu celular quase ao mesmo tempo em que ele começa a tocar. Lena.
— Eu vi — falo assim que atendo.
— Vai acordar Nai. Chegamos aí em cinco minutos.
Ela desliga sem esperar resposta.
Ótimo. Eu nem tinha lembrado do carro de Natasha. Mas isso quer dizer que ainda temos todo o caminho pela cidade central, até o castelo. Tempo demais.
Abro o aplicativo de mensagens e seleciono o contato de Maira. Posso pelo menos avisar que estamos indo e torcer para ela conseguir mandar ao menos um aviso para os guardas que ficam nos limites da cidade central.
Volto para a sala e pego o pão que deixei em cima da mesa. Dou mais uma mordida nele e saio, trancando só a porta do apartamento antes de correr para a escada, ao mesmo tempo em que começo a ligar para Nai. Duvido muito que ela esteja acordada agora. Nai dorme. E muito. E tem sono pesado.
O celular para de chamar. Não é o suficiente. Não sei se Nai desligou e voltou a dormir ou se entendeu que tem alguma coisa acontecendo. Coloco o celular para chamar de novo, enquanto desço as escadas quase correndo e tento terminar de comer. Cinco minutos parecem tempo demais, o que quer dizer que não tem como irmos de carro até o castelo. Vai ser muito demorado.
O celular para de chamar de novo. Que seja. Saio da escadaria e entro no corredor do apartamento de Nai. Tem algumas luzes acesas aparecendo pelas frestas das portas - por baixo da porta de Nai, também. Paro na porta e bato a campainha duas vezes, segurando o botão. Se dona Edna estava dormindo, ela também vai acordar agora e...
A porta se abre e dou de cara com dona Edna.
— Nai está terminando de se vestir — ela avisa. — Kauã vai encontrar vocês na entrada do prédio. Vou continuar aqui, por garantia.
— Se precisar... — começo.
— Se precisarem de mim lá, para um primeiro ataque, não acho que temos muitas chances. Mas se não acontecer nada aqui, eu vou.
Ótimo. Ela não está errada - se Zeli-Amare já começar a atacar de uma forma que a gente precise de tudo para se defender, não temos nenhuma chance. Mas não acho que vão fazer isso e ter dona Edna e mais necromantes no castelo seria uma preocupação a menos. Pelo menos já vamos ter Kauã, porque eu não tinha nem pensado em chamar mais alguém.
Nai sai do quarto e corre para a porta. E ela também está de mochila. Ótimo.
— Até mais, mãe!
Dona Edna assente.
— Tomem cuidado.
Eu acho que tomar cuidado e ir para o castelo agora são coisas que não combinam, mas não vou falar isso.
E o elevador está no décimo oitavo andar. Claro que está. Puxo Nai para as escadas e por milagre ela nem reclama. Vai ser mais rápido do que esperar o elevador chegar aqui.
Já tem luz em quase todos os andares, enquanto descemos correndo. Ninguém mais gritou já faz algum tempo, mas isso também não quer dizer nada demais. Os wyverns terminaram de passar pelos bairros altos, só isso. E estamos longe demais para ouvir qualquer coisa acontecendo no castelo.
Tem algumas pessoas na entrada do prédio, mas não é nem perto do movimento que vai ser daqui a uma hora, talvez um pouco mais. E todo mundo está olhando para fora como se esperassem uma bomba - ou um draconídeo - no meio da rua. Isso vai ser um problema. Não adianta falar que os bairros altos provavelmente não vão ser atacados. Se Zeli-Amare está passando assim, sem nem tentar se esconder...
— Ana! Nai!
Nai me puxa para fora do prédio. Natasha e Lena já estão aqui e Kauã está parado do lado do carro, segurando a porta aberta. Ótimo.
Entro no carro e pego meu celular um instante antes de Natasha arrancar. Nenhuma resposta de Maira. Não que eu estivesse esperando alguma coisa para valer, mas mesmo assim, não tem como não me preocupar.
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Marcas de Sangue (Draconem 3) - DEGUSTAÇÃO
Fantasy-= POST ÀS TERÇAS E SÁBADOS =- -= Primeira versão, não revisada. A versão final vai ter alterações. =- Ana sempre soube que suas escolhas teriam consequências, só nunca imaginou que a decisão de ajudar dois amigos seria o começo de uma guerra. També...