FRAGMENTO II

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Zarlok enumerou e classificou oito possíveis formas do pai morrer em uma cavalgada.

Infarto ocupava a oitava posição — não achou provável acontecer, mas incluiu mesmo assim —. Em sétima estava a possibilidade de o cavalo sair desgovernado e acabar pulando de um penhasco. As demais posições só elevaram a morbidez do garoto.

Precisava abandonar os devaneios. Giusse conseguiria lidar com quaisquer pragas que fossem jogadas a ele. Afinal, ele conseguia tudo.

Mas Zarlok, não. Não conseguia evitar nem os próprios pensamentos. As cenas em sua cabeça. A brutalidade excessiva.

Sabia que era alarmante. E sabia que poderia se queimar.

Uma poça de sangue tocava seus pálidos pés quando saiu da divagação. O líquido rubro ainda pingava de sua mão, e Istis cobria seu machucado com um pedaço de pano velho.

Evitou olhar para a irmã por quase dez minutos, não conseguiu achar o equilíbrio entre conversar com ela e pensar em formas do pai morrer. Ela também não falou nada, e mesmo se tentasse não conseguiria. Perdeu essa capacidade há muito tempo, passou a se comunicar com o irmão por meio de sinais. Fossem eles feitos com as mãos, batidas com os pés ou expressões faciais. Às vezes, quando Lok não entendia sua mensagem, Istis usava de seus desenhos para se comunicar. Nunca aprendeu a escrever, então essa não era uma opção.

"Tok, tok", bateu Istis a mesa de madeira, avisando que havia terminado o curativo. A dor não existia mais. Lok a agradecia perguntando se seria possível ela ser uma bruxa curadora de feridas enquanto limpava o vermelho da sola dos pés.

A irmã não esboçou reações desde a partida do forasteiro. Nem sorriu e tampouco chorou. Não quis dormir, nem comer, nem brincar, nem ensinar novos sinais a Lok, nem ir ver a cabra Leila, nem ajudar o irmão a limpar o sangue do chão — Lok não limparia sozinho —, nem isso e nem aquilo. Estava confortável sentada na cadeira sem estofado da sala.

— O que acha de darmos uma volta? — perguntou Lok, após alguns minutos. — Giusse ainda deve demorar, se quiser podemos cavalgar com a Valente. Faz tempo que não saímos para ver os campos.

Istis não se deu o trabalho de gesticular em resposta. Estava cansada de recusar os insistentes convites do irmão.

— Tudo bem se eu for sozinho então? Deixarei a Valente para depois, só vou dar uma caminhada. Se eu ficar nessa casa por mais dois minutos minha cabeça explodirá. Não vou demorar, mas se precisar de alguma coisa saía de casa e bata palmas bem fortes. Ouvirei de longe assim — instruiu. — Já vou indo.

Avançou para abraçar a irmã, mas ela se esquivou e correu para o quarto. Não buscou entender o motivo disso agora, precisava sair de casa. Apressou-se em pegar seu par de botas de couro que viu ao lado da porta. Não lembrava de os ter deixado lá, mas lá estavam, sujos e desgastados. Bateu sola contra sola para remover o excesso de terra e seguiu o rumo que suas pernas o permitissem fazer.

O sol estava alto no céu e com toda essa iluminação o garoto conseguia enxergar muito bem a horrorosa paisagem que se estendia diante dele. Um amontoado de árvores secas com galhos tão finos que chegavam a ser medonhos faziam parte de sua vizinhança. Lok tinha a impressão de que a qualquer momento elas tomariam vida e o atacariam furando seus olhos e garganta. Manteve-se cuidadoso ao passar por baixo delas. Já tinha visto muito sangue em poucas horas de dia.

Aves escuras circulavam no céu enquanto dava sua quarta volta pelo terreno da casa. Já não caminhava como antes, e a cada passo o corpo pendia mais para o chão. O mal-estar de manhã voltava como uma onda para cima do garoto. Somente a passos lânguidos conseguiu chegar à sombra do celeiro do pai.

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