Sou puxada pelo braço e agarrada por trás enquanto ele anda de ré, até entrarmos no beco à esquerda. Enxergo borrão atrás de borrão à medida que sou arrastada como uma boneca de pano. Não consigo me mover ou gritar, pois um braço está me segurando pela cintura e o outro cobre minha boca.
Eu vou morrer.
Eu vou morrer.
Eu vou morrer.
Eu não quero morrer.
Algumas vezes já pensei que morrer seria melhor, mas... não. Não assim.
Finco os dentes nos seus dedos o mais forte que consigo.
— PORR*! — geme baixinho.
Espera... eu conheço essa voz.
— Shhhhh — Pede. Me debato como um peixe fora d'água. — Merda! Para de se mexer, Ariel!
— Jake?! — minha fala indignada é abafada pela palma trêmula da mão dele.
— Shhhhh — repete, me guiando até uma espécie de esconderijo: ele libera minha cintura por um momento e, com destreza, tira uma tábua da frente de um buraco na parede, onde entramos. Ele encaixa a madeira de volta silenciosamente.
Mal tem espaço para nós dois aqui. Sinto seus batimentos acelerarem nas minhas costas. Não há um vestígio sequer de luz, com exceção do furo localizado na porta do esconderijo.
Esse seria um momento romântico pra caramba caso eu não estivesse sendo perseguida por um psicopata.
Jake abaixa a mão, liberando minha boca. Ele mantém a outra envolvendo meu quadril. Espero que ele não me solte.
O quê?! Que merda de pensamento é esse?!
— Eu te machuquei? — sussurra, preocupado. Sua voz está rouca.Uma onda elétrica percorre meu corpo, dos pés à cabeça.
E que merda de arrepio foi esse?
Não tenho culpa. O cara está grudado no meu cangote!
— Er... não — murmuro. — O que tá acontecendo, Jake? Como... como você sabia?
Ele inspira e expira profundamente. — Por que você não me escuta?
— Bem, porque... você é um estranho. Hacker. Suspeito.
Cheiroso.
Merda. Merdamerdamerda. Esse lugar apertado está sugando todo o oxigênio do meu cérebro.
— Por que você não me chamou? — sua entonação embravece. — Ele quase... droga, Ariel.
Arrepio. Arrepio. Arrepio. Ele obviamente não sabe que minha nuca é meu ponto fraco. O que foi que ele acabou de dizer?
— Hum? — indago. — Pode repetir?
Ele bufa, frustrado. — Eu deveria ter te buscado.
Não aguento mais. Tento virar o corpo de lado, mas assim acabo esmagando-o contra a parede. A única forma que encontro de deixar minha nuca longe desse causador-de-arrepios é virando de frente para ele. Giro o corpo, me desvencilhando de seu braço. Jake prende a respiração. Estamos perto. Muito perto.
— Você está vivo? — brinco, tentando não parecer nervosa. — Pode respirar. Eu não mordo.
Com minha visão limitada, observo-o dirigir o rosto para o lado. O que você está fazendo, Ariel? Você tem namorado.
— Eu acho que... já podemos sair, n-
— Não! — Jake interrompe. — Ele ainda não deve ter ido embora.
— Ele... — o medo regressa como um baque. — O sequestrador, certo?
— Exato. — Jake limpa a garganta, parecendo desconfortável. — Ele estava no beco à direita na rua de trás, de onde conseguia te observar.
— E... como você sabe disso?
Sua respiração esquenta minha testa, indicando que ele tornou a mirar a frente.
— Esqueceu que monitoro todas as ligações?
Quero abraçá-lo. Seria muito errado fazer isso?
— Mesmo assim... como você chegaria tão rápido? — Eu vim de carro.*
— E como você viu onde ele estava? E onde eu estava?
A cada pergunta, diminuo ainda mais a mínima distância que nos mantém separados. Sei que ele percebe, pois fica tenso como uma vara.
— Isso... é o de menos. Ariel... — ele sussurra — ...o que você-
— Droga — murmuro. — Eu não sei o que tem de errado comigo. Eu não sou de fazer essas coisas, de verdade. Então... não me pergunte por que estou fazendo isso. Só... dessa vez...
Encaixo meus braços sob os dele, entrelaçando-os em seu abdômen. Deito a cabeça em seu peito e cerro os olhos, inalando cada nota da fragrância de seu perfume.
Eu vou me arrepender desse momento. Sei que vou. Mas já é tarde demais para voltar atrás.
Jake não reage fisicamente, porém seu coração o entrega: parece que ele está prestes a ter um ataque cardíaco. Fico ali parada por alguns segundos até que, delicadamente, ele eleva a mão até meu cabelo e o alisa, fazendo cafuné. Lágrimas surgem nos meus olhos.
Estou assustada pra caralh*.
É como se, apenas agora, eu tomasse consciência do que acabara de acontecer: meu corpo treme por inteiro.
— Obrigada — o agradecimento sai abafado. — Você me salvou.
— Só estou... retribuindo o favor.
— Como assim?
— Bem... — Mais confortável, Jake me abraça de volta com o outro braço. — Você está me ajudando a salvar a Hannah, então...
— Ah, sim... a Hannah.
Por um átimo, esqueci que ele só fez isso por ela. O cara deve ser um dos retardados apaixonados pela garota popular. Na verdade, até as garotas babam pela Hannah.
Crack.
Do lado de fora, ouvimos o ruído de um galho se estilhaçando.
Fico de costas para ele e me agacho executando movimentos suaves, aproximando o olho da pequena abertura. Identifico pés, uma calça imunda e uma de suas mãos — coberta por uma luva preta —, visto que seu corpo está de lado. A despeito da escuridão, identifico botas sujas de terra. Prendo a respiração e cubro a boca, pedindo a todos os Deuses existentes e inexistentes para que ele não nos ouça.
Em câmera lenta, ele se vira de frente para a fina madeira que ainda nos mantém protegidos. PUTA QUE PARIU! O doente está apanhando uma faca de açougueiro na outra mão!
Estou prestes a chorar, gritar, chutar a tábua na cara dele e sair correndo.
Oh, não. Ele está se abaixando.
Mas que... porr*?! A máscara do Homem Sem Rosto?!
— 3... — Jake sussurra.
A mão livre da criatura vai para trás de seu corpo, de onde ele saca uma arma.
— 2...
Ótimo, Jake. Como se fazer a contagem regressiva para a nosso fim iminente ajudasse em alguma coisa.
O gatilho é encaixado perfeitamente na frente do meu olho. Recuo, ficando de pé e involuntariamente me agarrando à ele.
— 1...
Aperto os olhos. Adeus, mundo cruel.
Woo-wuu-woo-wuu.
Ao invés de tiro, o que escutamos é uma sirene escandalosa, seguida de passos apressados. Me afasto de Jake, acendendo a lanterna do celular e apontando na cara dele.
— Ai! — reclama, pressionando as pálpebras. — Quer me deixar cego?!
— Ele já foi, né? E eu estou viva. Você também. Não morremos! Jake, nós não morremos!! — comemoro, literalmente pulando de alegria. Acho que pisei no pé dele. — Espera, polícia? Por quê? Como?
— Calma — pede, cortando minha tagarelice. — Você achou mesmo que eu te pegaria estando na mira do sequestrador sem ter tudo planejado?
— Bem, eu... nem pensei nisso.
Ele esboça um daqueles sorrisos furtivos. — Já esqueceu quem eu sou, Ariel?
Retribuo o gesto, dando-lhe um soquinho no ombro.
— É, eu tenho que confessar... você ganhou meu respeito.
— Eu não fiz nada. Afinal, deixei ele escapar.
— Bom... — movo a lanterna de cima à baixo, avaliando seu físico. — Não acho que você teria chance contra uma arma e uma faca de açougueiro. — Dou umas cutucadas em seu braço. — Retiro o que disse: você definitivamente não teria chance. Nem 1%. Zero. Zero vírgul-
— Tá — rosna. — Já entendi.
Não contenho a gargalhada, vendo que de fato o irritei. Supondo que a polícia saiu em perseguição atrás do tal "Homem Sem Rosto", já que mal podemos ouvir o barulho da sirene. Empurro a madeira com as mãos e saio sorrateiramente.
— Por aqui — ele aponta. — Deixei meu carro perto do Mc Donald's.
— Você tem seu próprio carro?! Que sorte. Meu pai nunca me daria um.
Caminhamos lado a lado. Enquanto estou paranoica até com minha própria sombra e tento puxar qualquer-tipo-de-assunto para evitar o silêncio, Jake permanece cabisbaixo, enfiando as mãos no bolso do moletom como de costume.
Após um longo intervalo, ele diz: — Não tenho pais.
Meus olhos se voltam para seu rosto imediatamente.
— Eu sinto muito... Não queria...
— Não, tudo bem. Isso já faz muito tempo.
Por algum motivo, tal afirmação não me convence. Algo me diz que não está tudo bem. No entanto, quem sou eu para me meter?
— Vamos mudar de assunto — pede ele quando localizamos o automóvel. Ele abre a porta do passageiro para mim. — Você conseguiu ver alguma coisa?
Assim que me acomodo, Jake dá a volta. Seu carro é todo preto, bem espaçoso; as janelas foram vedadas e os bancos parecem de couro. Não entendo nada de carros, então não faço ideia de que modelo é esse, mas, uma coisa é certa: me lembrarei deste dia sempre que sentir cheiro de menta — ele tem uma daquelas arvorezinhas perfumadas penduradas no espelho retrovisor.
O carro ganha vida. Tento vasculhar a memória do que acabara de acontecer.
— Ele estava usando botas. Não consegui identificar o modelo ou a cor, mas era escura... talvez marrom. Ou preta. — Mordo o lábio inferior, pensativa. — A calça que ele vestia estava meio rasgada e suja, e era clara... talvez cinza, ou branca... Ah, ele vestia um moletom preto, a toca cobria a máscara do Homem Sem Rosto.
— O quê? — questiona, intercalando o olhar entre mim e a estrada. — Ele está usando a mesma máscara daquela lenda idiota?
— Sim. Tenho certeza. Você não deve ter reconhecido, como não é de Duskwood.
— E você tem uma ideia do porquê?
Me viro para ele, apoiando um dos pés no banco. — Você não foi no centro desde que chegou? — Jake balança a cabeça em negação. — Ah, tá explicado. Você não conhece a Scarecrow então.
Ele pisa no freio com tudo.
— Mas que merda?! — berro, com a mão sobre o peito. — De que adiantou ter me salvado do sequestrador se já está querendo me matar?!
— Desculpe, eu... — Jake veste o capuz numa tentativa de encobrir o rosto. — Você... está bem?Ele agarra o volante com força. Seus olhos estão arregalados, vidrados no sinal verde do semáforo.
— Foi alguma coisa que eu disse? — pergunto, receosa.
Ele pisca freneticamente, voltando a afundar o pé no acelerador. — Não foi nada.
Mentira. Tenho certeza de que o perdi por um momento. É como se, de repente, ele não estivesse mais aqui. Como se...
— Chegamos — avisa, estacionando na calçada de casa. — Sobre a Scarecrow... o que é este lugar?
— Ah, é mesmo. É uma loja dedicada à tão famosa lenda do Homem Sem Rosto. Você já deve ter percebido que Duskwood adora o fato de termos uma lenda que tem se tornado realidade nos últimos anos. Bem, como se não bastasse enfiar o corvo em tudo quanto é símbolo relacionado à cidade, inauguraram essa loja uns 5 anos atrás disponibilizando máscaras, camisetas, xícaras, fantasias, e assim vai... — reviro os olhos, tirando o cinto. — Ou seja: hoje em dia, é a coisa mais fácil do mundo conseguir uma daquelas máscaras. Ouso dizer que todos que moram aqui devem ter uma guardada no porão de casa.
Abro a porta, pondo uma perna para fora.
— Obrigada, mais uma vez. Não sei o que teria acontecido se você não estivesse lá. Quero dizer... — faço careta, recordando o que Jessy nos contara mais cedo — ...eu sei exatamente o que teria acontecido.
— Não precisa me agradecer, Ariel. — Sua fisionomia muda de agradável para vou-te-matar em questão de milésimos: — Mas ai de você se não ouvir meus conselhos e desligar na minha cara de novo.
Mostro-lhe um sorriso travesso. — Não é tão bom assim quando desligam na sua cara, não é mesmo?
Ele ri, entendendo a que me refiro.
— Tomarei cuidado para não acontecer de novo — garante.
— Eu também.
Destranco o portão metálico e caminho até a porta de casa. Quando olho para trás, reparo que seu carro ainda está lá. Abro sua janela no Whatsapp:
"Quanto cavalheirismo."
"Nunca se sabe onde o sequestrador pode estar escondido."
Aceno para Jake, irrompendo na sala.
Ah, não. Meu pai está aqui, jogado no sofá.
O tapete do cômodo encontra-se dominado por garrafas vazias de uísque, bitucas de cigarro e uma caixa vazia de pizza. É com esse tipo de coisa que ele gasta seu mísero salário. Meus ouvidos choram com a música mais-chata-do-universo. Eu já gostei dela nas primeiras trinta vezes que ouvi. O problema é: esta era a música dos meus pais, em outras palavras, o velho a escuta todas as vezes que está na fossa — o que é sempre que ele resolve aparecer.
Querida, você parece cansada
Quando foi que você comeu pela última vez?
Entre e sinta-se em casa
Fique o quanto precisar
Diga-me, tem algo errado?
Se tem algo errado
Você pode contar comigo
Você sabe que eu arrancaria o meu coração fora
Se ajudasse o seu a bater
Está tudo bem se não consegue encontrar as palavras
Deixe-me tirar o seu casaco
E tirar também esse peso dos teus ombros
Como uma força a ser contada como
Um oceano poderoso ou um beijo gentil
Eu te amarei com tudo o que eu tenho
Como uma maré agitada, eu farei uma bagunça
Ou como águas calmas, se for melhor para você
Eu vou te amar sem exigir nada em troca
Está tudo bem se você não conseguir respirar
Você pode tirar o oxigênio
Diretamente do meu próprio peito...
Cobrindo as orelhas com as mãos, atravesso a maré de lixo na pontinha dos pés, alcançando a escada que leva até meu quarto.
— Não vai dar oi pro seu pai?
Me apoio no corrimão, sem olhar para ele. Me recuso a vê-lo nesse estado deplorável.
— Oi.
— Zozê não vai mizoiá? — balbucia, completamente bêbado.
Ignoro.
— Boa noite.
— Ariel, eu...
Não fico para ouvir o restante da frase.* (em alguns países, é permitido dirigir com 16/17 anos)
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SCARECROW - DUSKWOOD
Mystère / ThrillerDo ponto de vista de Ariel, não há cidade mais bizarra que Duskwood. E, de certa forma, ela não está errada: todos os anos, nas noites de 31 de outubro, um cadáver é encontrado no meio da floresta. A polícia negligente é incapaz de divulgar detalhes...