01 - Em frente à grande cerca

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Luz Noceda, uma menina de quatorze anos, encara seu rosto em frente ao espelho de seu banheiro. Ela desapontou a sua mãe outra vez e se sente péssima por isso, como se tudo o que fez até hoje tivesse sido um erro — o que não deixa de ser verdade, pelo menos para ela. Uma, duas e, por fim, três lágrimas escorrem pelas suas bochechas, sendo limpas com o dorso de sua mão.

O diretor da escola obrigou a sua mãe a colocá-la no Acampamento de Realidade, onde conviverá com adolescentes por um bom tempo e só pensará "dentro da caixa", assim aprendendo a se comportar e interagir com os outros de uma maneira "normal". Claro que Luz não está contente com isso, e muito menos agora, pois daqui a alguns minutos, o ônibus chegará para levá-la até o famoso acampamento.

Luz desce a escada com sua bolsa, cabisbaixa. Ela sempre tentou se enturmar sendo ela mesma, mas sabe que nada que fez foi bom o suficiente e fingir que está tudo bem não ajudaria em mais nada.

Já está quase chegando a noite. Na calçada, a pré-adolescente aguarda a sua mãe, Camila Noceda, refletindo sobre todas as ações que tomou na escola, sem certeza do que fez de errado, porém sem força nenhuma para se defender, já que ninguém a iria escutar.

É possível ouvir Camila fechando a porta e se aproximando de sua filha.

— Aww! Ah, meu bebê! — Ela abraça Luz. — Não se preocupe! O acampamento vai ser só por três meses. Você vai se distrair fazendo o balanço de finanças, e aprendendo a... a gostar de música de rádio?! O tempo vai passar voando!

— Mas eu não gosto de nada disso! Eu gosto de editar vídeos de anime com música e ler livros de fantasia com histórias secundárias complicadas!

— O seu mundo de fantasia tá te atrapalhando. Você tem algum amigo? De verdade. Sem ser imaginário, desenhado ou reptiliano...

Luz abaixa a cabeça, indo até a lixeira e jogando seu livro favorito dentro dela.

— O acampamento é sua chance de fazer amigos, mas você tem que tentar! Pode fazer isso?

— Posso, mãe.

O celular de Camila vibra.

— Oh! Eu tenho que trabalhar — Ela dá um beijinho na testa de Luz. — O seu ônibus já vai chegar. Manda mensagem quando chegar. Cuídate mucho, mija. Que te vaya bien!

— Tchau, mãe.

Luz vê Camila se afastando e arfa, dando um pulo dentro da lixeira em busca de seu livro.

— "Acampamento da Realidade"?! "Pense dentro da caixa"?! — Luz solta um riso anasalado, debochando do que sua mãe disse, ainda à procura do seu objeto. — Acampamento é o caralho! Eu vou é pra bem longe do inferno que é este lugar.

Ela não encontra o seu livro e se desespera. "Onde será que foi parar?", se pergunta, até avistar uma pequena coruja levando um saco de lixo. Lá está ele, é claro.

Sem pensar duas vezes, Luz corre atrás da maldita coruja, xingando o bicho com os palavrões mais feios que veio aprendendo com youtubers ao longo dos anos.

Passando alguns minutos correndo, Luz desiste, colocando a mão em seus joelhos e respirando ofegantemente. Seu coração está disparado, uma leve sensação de morte e... um suposto ar pesado que influencia isso. Olhando para cima, a garota nota que está de cara para a cerca gigante, que divide o mundo em dois: a parte dos humanos e a parte dos sem-alma. Como tudo está escuro e não há muitos postes de luz por ali, a visão é um pouco assustadora. O barulho é de vento.

Reza a lenda que, do outro lado, a população é cruel, por isso existe a cerca. Para proteger os humanos.

A coruja passa por cima daquela enorme grade segurando o saco de lixo com seu bico, ainda que com dificuldade, por conta da quantidade de materiais dentro da sacola. Demoraria muitos minutos para que alguém conseguisse subi-la, só que Luz não pensa duas vezes e já começa a escalá-la o mais rápido que pode, sem tirar o olho do animal ladrãozinho, que não aguenta o peso e cai no chão, derrubando tudo do outro lado, desmaiando.

A garota continua escalando, comemorando que a corujinha está desacordada no chão.

— Ufa! Ainda dá tempo!

Depois de alguns minutos, do outro lado da cerca, ela pega seu livro, o guardando dentro de sua bolsa transversal.

— Preciso ser rápida! Se me virem aqui por perto, ainda mais à noite, vou acabar me lascando! — Luz veste a touca-gatinho de seu casaco para não ser reconhecida. — Lá vou eu!

De repente, três policiais aparecem.

— SE AFASTE, MONSTRO! — O primeiro policial se manifesta, tremendo de medo de Luz ser um dos habitantes do outro lado.

— Não, peraí!!! Eu não sou um monstro, não! Eu sou uma humana! Me ajudem a sair daqui!!!

— Se afaste da grade imediatamente! — O segundo policial avisa. — Vocês devem seguir o protocolo! Nenhum monstro do seu lado pode vir para cá! Não vamos falar mais uma vez!!!

Não há jeito de convencer os policiais de que ela não é um monstro! Tudo está muito escuro, a neblina não ajuda em nada e ficar de papo não vai resolver muita coisa. Luz, desesperada e sem saber o que fazer, pula na grade e começa a escalá-la, morrendo de medo de ser baleada.

— O MONSTRO ESTÁ SUBINDO! O MONSTRO ESTÁ SUBINDO! ATIVE O GEOAPITO, RÁPIDO!

O terceiro policial assopra o geoapito, uma máquina de alerta que serve para deixar a cerca brilhante de cor vermelha por todo o planeta Terra, apresentando perigo de ataque. Luz se assusta e seu coração volta a ficar acelerado, porém ela decide continuar subindo. É injusto! Não podem deixá-la do outro lado da grade de jeito nenhum! As Ilhas Escaldadas são muito perigosas e todos sabem disso!

Em questão de segundos, toda a eletricidade do lado dos humanos é transferida para a grande grade, onde a menina se encontra, deixando casas, lojas, postes e todos os outros lugares totalmente sem energia elétrica, causando um grande apagão.

Luz, por estar segurando na cerca, leva um choque muito forte e grita, sendo lançada para bem longe das grades enquanto é eletrocutada, apagando.

Do Outro Lado (A Casa Coruja - The Owl House)Onde histórias criam vida. Descubra agora