O homem além do século

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As técnicas de varredura e síntese de estruturas foram adaptadas para outras áreas como medicina e a indústria farmacêutica. A química farmacêutica foi aprimorada de tal forma que era possível conhecer, com um nível de detalhes nunca antes almejado, a constituição de vírus, bactérias, parasitas e de células do próprio corpo humano. Desta forma, sintetizar novos medicamentos que interagiriam com estes agentes ocorria de forma muito mais precisa. 

Isto elevou a expectativa de vida da população mundial em décadas. Mas foi a proposta de intervenção bioquímica de receptores ɠs4 ou intervenção biquímica de receptores de Sørum (nome dado em referência ao biólogo molecular Erlend Sørum) que criou o conceito de fabricar um receptor que fosse comum à todas as células do corpo. Construído de forma orgânica como qualquer outro receptor de membrana natural, se utilizaria de mediadores químicos para alterar funções celulares. No entanto, atuaria de forma bem mais complexa e abrangente. Podendo impedir ou acelerar apoptose celular, protegendo o DNA da degeneração natural ou induzida por agentes externos, mobilizando células de defesa contra agentes infecciosos e impedindo o ataque do próprio organismo no caso de doenças autoimunes. Tudo isso poderia ser ativado quando fosse preciso. Funcionava como uma porta de entrada facilmente acessível ao organismo.

Seria necessário, então, saber onde o problema se encontrava, direcionando a cura para qualquer doença e até mesmo impedindo o envelhecimento.

A ideia foi a de marcar cada receptor com uma assinatura química única. Cada célula que constituía o corpo humano teria um número de série e poderia ser mapeada. Trilhões de chaves que poderiam ser acessadas por mediadores químicos sintetizados para qualquer fim.

As pessoas dormiam em câmaras adaptadas com um dispositivo de varredura que buscava qualquer defeito ou degeneração em cada célula do indivíduo. Pela manhã, o AMN sintetizava uma pílula com mediadores químicos e pacotes de substituição celular prontos para intervir nos receptores e em estruturas célulares, dependendo das necessidades diagnosticadas na noite anterior.

Como em toda revolução, interesses, doutrinas e comportamentos são revistos, criados e provados.

A quase inocuidade da ação humana na rotina das cidades, a ausência de grandes conquistas pessoais e a desvalorização do medo da morte pareciam impactar a mente de forma negativa. Índices de distúrbios neurológicos como ansiedade, depressão e esquizofrenia aumentavam conforme a maior parte de outras doenças eram extintas. Esses fatos aparentavam estar intimamente conectados.

Uma enfermeira britânica, Margareth Lewis, sofria de fortes dores de cabeça acompanhadas de frequentes devaneios. Relatou ao serviço de saúde que conseguia enxergar as pessoas à sua volta, mas as descrevia de forma diferente, como se não possuíssem olhos, apenas grandes órbitas de fundo negro. A sra. Lewis foi colocada em repouso e observação. Foram-lhe administrados medicamentos sedativo-hipnóticos que a fizeram dormir. No entanto, mesmo sob forte sedação, os sinais de ansiedade podiam ser observados, como se as alucinações persistissem durante seu sono. Os exames de sangue apresentavam, quase todos, valores normais, apenas a saturação de oxigênio parecia estar alterada. Como a paciente não estava utilizando respirador artificial, o médico de plantão entendeu que poderia tratar-se de um erro de coleta ou da leitura do aparelho. Pediu que este teste fosse refeito e anexou o pedido ao prontuário. Também sugeriu que a sedação fosse diminuída para avaliação da paciente.
Com a diminuição da sedação, Margareth despertou naquela mesma noite. Ao acordar, encontrou o quarto do hospital com as luzes apagadas, olhou para o lado e viu um homem deitado de lado com as costas voltadas para ela. Acreditou tratar-se de seu marido, Joseph. Chamou por ele com a voz ainda frágil e engasgada. O homem virou-se lentamente e ela pode observar uma pessoa sem face. Um buraco do tamanho de onde deveriam estar olhos, nariz e boca tomavam conta de suas feições. A criatura estendeu o braço em sua direção e seus dedos pareciam alongar-se tentando atingir o seu corpo. 

Um embate social e religioso surgiu quando seu marido tentou refabricar a esposa morta em seu Assimilador. Já era sabido que a máquina poderia produzir tecidos orgânicos, portanto, em teoria, seria possível fabricar um ser humano. Mas o que separa um corpo humano vivo do não-vivo não é apenas a quantidade e a conformação de moléculas presentes. Então a máquina produzia apenas cadáveres. Assustado, o homem contatou o resgate do hospital, que ao chegar e se deparar com dois corpos idênticos, gerou bastante repercussão.

Meses depois descobriram um maníaco que fazia cópias de pessoas conhecidas e após vilipendiá-las, as descartava em uma vala escavada em um dos cômodos de sua casa.

Esses, entre outros eventos, acarretaram em um controle e monitoramento de atividades relacionadas à sínteses orgânicas.

Caso encerrado em 3034Onde histórias criam vida. Descubra agora