Prólogo

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Era uma terra de inverno eterno.

Uma terra selvagem, ideal para os homens selvagens que nela viviam. Fortes, altos, robustos e brutos. Sobrevivíamos graças à caça e à pesca, apesar de ainda existir algum comércio entre nossa vila e outros povoados.

Eu escutava histórias sobre o Oriente que às vezes me davam vontade de largar tudo e seguir o rio que nos ligava ao resto do mundo; ir embora e abandonar a neve e a frialdade inorgânica daquela terra estéril.

Mas minto. Havia pomares e plantações também, verdes e robustas nos meses mais amenos. Essas eram cultivadas pelas mulheres, que não conseguiam enfrentar as montanhas geladas, muito menos os lobos brancos e ferozes que nelas habitavam. Algumas vezes eles desciam à vila, e uma pessoa morria. Uma mulher, uma criança, ou até mesmo um homem desavisado. Quem nunca os tivesse visto, os confundiriam com ursos brancos, mas eram lobos: grandes e cruéis. Eles gostavam de manchar a terra de vermelho com nosso sangue; talvez porque também o manchássemos com o deles.

Não eu. Eu não manchava. Eu gostaria, pois então não precisaria aguentar os sussurros maldosos, ou os olhares de desprezo e desaprovação. Eu era baixo e franzino e poderia ser confundido com uma garota. Claro, eu era novo, e quantos meninos não são confundidos quando novos, quando ainda possuem a doçura da juventude inocente e casta, com suas primas e irmãs? Mas não em nosso povoado.

Os garotos da minha idade eram todos fortes e bem mais altos. Já acompanhavam os pais nas caçadas e enfrentavam a altura das montanhas. Aguentavam o frio com o orgulho da mais bruta força. Eu não possuía essa força; adoecia sempre que o inverno castigava mais do que estávamos acostumados. E estávamos acostumados a muito. Usávamos peles grossas, dos lobos, ou de materiais trazidos pelo comércio.

Era verdade que eu estava acostumado, mas não gostava de viver ali. Era sujo, chovia e a lama atrapalhava a caminhada. O cheiro era sempre uma mistura tosca dos lugares mais pobres e simples: peixe podre, gado, sangue e fezes. Éramos sujos por definição; principalmente os homens. Esses pareciam se importar ainda menos com seu cheiro besuntado.

Eu gostava de me sentir limpo, e também gostava de ajudar com o artesanato. Diziam que eu tinha muitas habilidades com as mãos. Minhas mãos, tão desprezadas pelos caçadores. Pequenas, frágeis e delicadas, com dedos finos e longos e unhas que eu insistia em manter limpas, mesmo que elas sempre retivessem algo da terra e da lama que nos circundava. Eu também pintava as imagens de Cristo no Monastério que ficava na parte mais elevada da vila, ou tocava harpa, coisa de preguiçoso, diziam.

Às vezes obrigavam-me a descer até as tavernas para tocar para os idiotas bêbados. Eles gostavam da minha voz, ainda que preferissem debochar de mim com suas risadas altas e grossas, ou olhar-me com malícia pelos meus cabelos loiros, finos e macios, ligeiramente compridos, caindo até meus ombros. Meu pai era um grande caçador, um dos melhores. Acho que eu era a vergonha dele por ser como eu era, e ele culpava minha mãe. Tão delicada e suave. Um verdadeiro anjo.

Morreu há alguns anos. O inverno fora um verdadeiro castigo dos céus, e eu ainda posso me lembrar da tez pálida e dos olhos apagados dela. Tenho pesadelos com eles, na verdade. Senti medo de morrer como ela, ao mesmo tempo em que senti vontade de acompanhá-la até os céus. Sei que ela foi para o céu, doce alma.

Eu estava dentro de nossa casa, uma casa simples de apenas um cômodo, desconfortável, mas boa para proteger do vento e do frio. Elas eram construídas aproveitando-se os restos do que fora uma grande civilização. Era o que diziam; com um pouco de caminhada, podiam-se ver as ruínas de um castelo e igrejas que antes rivalizavam com as de Bizâncio e suas riquezas e maravilhas. Mas isso era passado, um passado lembrado apenas pelas cantigas, canções sobre o grande império caído em terras esquecidas.

Era uma vez em Veneza (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora