Epílogo

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#Lanna

Era véspera de natal e havia pouca neve quando pisei fora do carro em frente ao casarão ao qual Lizz tinha me dado o endereço. Julian logo surgiu ao meu lado estendendo a mão para me ajudar. Sorri e segui abraçada por ele até a porta do casarão tocando a campainha. Num portão ao lado um caminhão descarregava cobertores, colchões, comidas e brinquedos. Estava ali há pelo menos uns quarenta minutos.
O orfanato era humilde, recebia muita pouca ajuda do governo, não havia muitas crianças ali, mas ainda sim estavam ali, e eu não podia ignorar. Então nós acrescentamos o orfanato em nossa lista de instituições ao qual ajudávamos e a mudança estava começando. Eu não podia negar que só conheci o lugar por ser onde Ruby estava abrigada. Passei toda minha vida em Seattle e nunca havia ouvido falar do lugar. Mas agora tudo seria diferente.
Fomos atendidos pela cuidadora ao qual mantivemos contato nas últimas semanas. Emily, era ela quem morava ali junto com as crianças e cuidava de tudo, logo teria o cargo de diretora.
— Chegaram! As crianças estão tão ansiosas.
— Nós também estamos.
Eu disse e segui acompanhando Emily para dentro, Julian logo atrás com a mão em minhas costas. Nos livramos dos casacos e cachecóis e encontramos com as crianças na grande sala de estar. Estavam todos assistindo ao filme natalino e olharam curiosos para nós.
— Crianças, digam olá para o Sr. Emerson e a Srta. Bower.
Houve um coro em voz infantil nos cumprimentando e arrancando sorrisos. Eu fui a primeira a sentar no meio das crianças e perguntar o que estavam esperando daquele natal.
— Emily nos faz biscoitos amanteigados muito bons e passamos o dia vendo filmes. Às vezes abrimos nossos presentes antes da meia noite. O Papai Noel nunca vem mesmo. — Uma menininha que aparentava ter sete anos disse tristonha.
— Então acho que é o Natal da sorte de vocês. — Comecei — Eu e Julian falamos com o Papai Noel e sua equipe...
— Os duendes? — Perguntou um garotinho.
— Sim. Eles disseram que farão uma visita hoje para vocês.
— Mas o Papai Noel só vem a meia noite, e temos que deixar biscoito e leite morno para ele ficar satisfeito e voltar no ano seguinte. — O garotinho disse sucinto.
— Vamos contar um segredo pra vocês. — Julian disse sentando no meio das crianças. — Nós conseguimos antecipar a visita do Papai Noel, ele ficou muito contente em saber que são boas crianças e está vindo entregar presentes pra vocês. Disse que virá esta tarde.
— Mas a Verônica não foi uma boa menina esse ano. Ela ficou puxando o cabelo do Kirt o tempo todo. — O garotinho cruzou os braços emburrados.
— E você fez xixi na cama, Andrew. O Papai Noel não gosta de mijões.
Uma gritaria se deu início e Julian e eu nos vimos perdidos, tendo que Emily conter as crianças.
— O Papai Noel está muito bondoso esse ano, e está dando um voto de confiança, então no ano que vem vocês terão que fazer só coisas boas. Ninguém quer decepcionar o Papai Noel, não é?
Julian perguntou passando o olhar para as crianças que assentiram. Ele sorriu para mim e sorri de volta, voltando a conversar com as crianças, perguntando seus nomes e o que gostavam de fazer.
Enquanto Julian ficava com as crianças, fui atrás da garotinha de meu maior interesse. Era a única bebê naquele lugar e ficava num quarto separado, mais próximo ao dormitório de Emily, já que era nova e precisava de um pouco mais de atenção. Segui a cuidadora até o quarto rosa, com mais quatro berços vazios e o do meio ocupado por uma garotinha ao qual eu reconheceria em qualquer lugar.
— Ela sempre fica quietinha. Acorda e fica em silêncio, tenho sempre que vir checar ela.
— Posso pegá-la? — Perguntei ansiosa.
— Claro que sim. Vou te dar um momento.
Emily saiu do quarto enquanto eu pegava Ruby nos braços. A bebê fez uma caretinha, mas sorriu com o movimento repentino e então se aconchegou nos meus braços.
— Oi Ruby, você lembra de mim? Não? Bem, eu lembro de você. O tempo todo na verdade.
Sorri enquanto seguia balançando a bebê até a janela para ver a neve caindo.
— Você está num bom lugar Ruby, melhor do que com as pessoas que te deixaram.
Era o que eu dizia desde que a vi naquela caixa. Eu não sabia explicar por que a bebê não saía dos meus pensamentos, talvez por ter presenciando um acontecimento tão chocante, mas decidi que Ruby merecia todo o amor do mundo, e eu faria o possível para que ela o recebesse.
— Encontrei você. — Me virei quando ouvi a voz de Julian. — É ela?
— Sim. — Sorri o vendo se aproximar
— Ela é linda, Lanna. — Constatou Julian estendendo os braços para a bebê. — Nossa.
Ele sorriu deitando a cabeça da bebê em seus braços. Ela ficou olhando seriamente para ele que a encarava de volta. Mexendo as perninhas incomodada. Então ele a colocou de pé debruçada sob seu peito.
— Exigente.
Sorri e acariciei as costinhas dela.
— Emily disse que ela acorda e fica sozinha sem chorar. Ela sabe o que quer e quando conseguir. Tem uma personalidade muito forte desde pequena.
— É claro que sim, é uma guerreira desde o início.
Julian balançou a bebê por mais alguns minutos antes de entregar para mim novamente, e fiquei mais que contente em ter a bebê em meus braços novamente.
— O Papai Noel vai chegar em alguns minutos. Vamos para a sala, é o primeiro natal dela também. Deve estar lá. — Disse Julian.
Ele pegou o bebê conforto e seguimos para a sala de estar, as crianças olharam curiosas e temerosas para nós e o novo bebê, mas nós decidimos dar o mesmo tipo de atenção a todos.
No momento em que o Papai Noel chegou com presentes nos afastamos das crianças. A sala de estar do orfanato tinha uma nova atração e cada criança tinha um imenso sorriso no rosto. Olhei para o bebê conforto um pouco mais afastado e percebi bracinhos e perninhas agitados. Peguei Ruby no colo no início de um choro. Poucos minutos depois Emily apareceu com uma mamadeira e Julian me acompanhou até o quarto rosa.
— Ela gosta de você. — Disse me vendo dar a mamadeira para a bebê.
— Acho que ela gosta de qualquer um que a alimente e não a abandone.
Julian olhou para Emily com rugas de preocupação.
— Os detetives não tiveram nenhuma informação?
— Eles vão largar a investigação. Aparentemente um homem com as mesmas características do vídeo pegou um avião para fora do país. Ela está conosco agora. Isso é bom.
— Mas se descobriram sobre o voo podem identificá-lo.
— Mas só podem dar voz de prisão se estiver dentro do país. Já ouvi falar muito de casos assim, Sr. Emerson. Ele abandonou um bebê e fugiu do país. Não irá mais voltar.
— Mas e a mãe?
— Julian, se tivessem descoberto algo, Emily saberia. — Eu disse. — Ela já tinha dois meses quando a encontramos. Tiveram tempo para decidir que não ficariam com a bebê. Ela não precisa saber os nomes dos covardes no futuro.
A bebê terminou a mamadeira e arrotou logo em seguida. Coloquei uma fralda de pano perto do rosto da bebê e a balancei até que dormisse. Nenhum outro bebê além de Malu e Melanie tinha dormido nos meus braços. E naquela noite de natal quando fui dormir, não consegui tirar a lembrança de Ruby se aconchegando em meus braços.

Dois meses depois

— Está um pouco devagar, Lanna. O que está havendo?
Tirei o cabelo solto da frente dos olhos e ofeguei levantando a guarda encarando meu treinador.
— Não é nada, Jack.
— Sei que não sou Martin, mas pode conversar comigo se algo estiver te incomodando.
Sorri balançando a cabeça.
— O problema não é você não ser Martin. Você é ótimo também, Jack. Trabalhou com Sophie e agradeci a recomendação dela. Está tudo bem.
— Não é todo lutador que pode escolher sua própria equipe. Você pôde. Também estou contente por estar aqui, mas pra isso dar certo você precisa se concentrar.
— Você está certo, desculpe. — Alonguei o pescoço suspirando. — Podemos continuar amanhã? Uma hora mais cedo pra compensar?
— Podemos continuar amanhã, mas você vai compensar agora.
Jack deu um sorriso mandão para mim que revirei os olhos ao assentir. Ele me fez pagar três minutos para cada três exercícios. Ao final eu estava suando mais que antes, mas agradecia ao trabalho duro. Jack era meu treinador há dois meses, era loiro e tinha um marido e um filho de quatro anos em casa. Eu adorava ouvi-lo falar sobre sua família.
— Vai me dizer o que está nessa sua cabecinha atrapalhando nosso treino? — Ele disse tirando as manoplas de treino.
— Há tanta coisa. Nunca lutei sem Pietro, Julian está o tempo todo treinando como eu, estamos bem e felizes. Temos nossas folgas e curtimos elas. Há meu avô também, meu pai está achando que vamos perder ele a qualquer momento. Eu só... Há muita coisa pra conciliar. Eu achei que estaria pronta pra rotina, mas ela me pegou.
— Isso acontece com todos os iniciantes, Lanna.
— Todos os iniciantes tem esse tipo de drama familiar?
— Desde quando você se faz de coitada?
— Eu não estou fazendo isso! — Olhei confusa e chocada para ele.
— Nunca te falei isso com todas as palavras, querida, mas acompanho sua vida e sua carreira desde que suas fotos com Julian vazaram. Você passou por muita coisa mesmo, mas muitas pessoas passam por coisa ainda pior. Você precisa começar a olhar os dois lados da moeda. Sua vida está ótima agora, não estrague isso.
Fitei a lona sob meus pés. Agradecia a Jack por ele ser sempre sincero, mas agora... Agora não sabia que precisava tanto ser chacoalhada e acordada para a vida real.
— Não devemos sentir pena de nós mesmo, Lanna. Isso só faz nos atrapalhar. Faça um favor para si mesma hoje. Pare e pense no que te faria realmente feliz. Sei lá, comer um doce, assistir um filme ou série favorita.
— Lutar me faz feliz.
— Este é o seu trabalho agora, terá que procurar outro hobby.
Desviei o olhar para pensar e em reflexo meu sorriso se abriu ao pensar em Ruby. Tinha feito visitas periódicas ao orfanato, brincava com as crianças e ao final sempre colocava a bebê para dormir. Emily dizia que ela havia se acostumado a dormir com um paninho no rosto, aquilo aqueceu meu coração.
— Aí está. Já encontrou algo que a faz feliz.
— Eu não chamaria de hobby.
— Chame de qualquer outra coisa, mas te faz feliz. Agarre isso.
Considerando o que Jack dizia, fui me trocar sem tirar o sorriso do rosto. Fiz algumas ligações de última hora e agradeci por dar tudo certo.
Consegui tempo para passar em meu apartamento e tomar um banho antes de sair para a academia de Martin. Eu consegui chegar momentos antes de toda a algazarra.
Os alunos estavam preparados com todos os equipamentos e sorriam quando as crianças do orfanato chegaram com sorrisos e olhares brilhantes, encantados com a academia. Eu estava adiando aquela visita, mas depois do conselho de Jack, mudei de ideia. Não queria aparecer no orfanato um dia depois de ter feito minha visita, mas queria ver Ruby. Eu precisava. Então de última hora agendei aquela visita.
— Está me devendo uma. — Murmurou Martin para mim sorrindo para as crianças.
— Claro. Obrigada, mestre.
— Lanna! — Emily me chamou carregando Ruby no bebê conforto. — Bom ver você, eu confesso que estou um pouco... Surpresa. As crianças não saem muito a noite. Agradecemos o convite.
— Elas precisavam de um balanço em suas rotinas. Os últimos meses têm sido ótimos para elas. E pra mim também. Agora... Olha só quem está acordada!
A bebê, assim que me reconheceu, mexeu os bracinhos e perninhas agitadas com um sorriso banguela. A tirei do bebê conforto e a ergui nos braços sorrindo para ela.
— Oi Ruby, vamos conhecer a academia?
A bebê fez um som incoerente arrancando risos de nós três. Segui com Ruby nos braços mostrando tudo na academia. A bebê não soltava minha trança, mas tinha o olhar atento. Enquanto assistíamos aos alunos de Martin deixarem as crianças socarem e chutarem os protetores, Ruby deitou a cabeça no meu ombro, me fazendo suspirar com as mãos em suas costinhas.
Fechei os olhos aproveitando o momento. Era como uma lufada de ar, sempre que tinha esses momentos com Ruby, não sabia explicar, mas sabia que havia uma ligação ali. A bebê me deixava bem, não saía dos meus pensamentos. Eu era feliz com ela em meus braços e amava quando sentia a garotinha confiar em mim e aproveitar meu colo e carinho.
— Estou surpreso. Você organizou tudo isso de última hora? — Abri os olhos sorrindo.
— Julian. Bem, eu consegui.
Sorrimos um para o outro quando Ruby ergueu a cabeça e sorriu se jogando para frente querendo ir com Julian.
— E você, vermelhinha? Está gostando? Hum?
Julian a ergueu acima da cabeça arrancando um gargalhada da bebê. Ruby continuava a corar ficando vermelhinha. Daí Julian começou com o apelido, péssimo, na minha opinião, mas toda vez que Julian o falava, Ruby ficava atenta, sabendo que era com ela.
— Eles parecem ter gostado muito de vir aqui. — Julian disse enquanto me abraçava pelo ombro.
— Sim, temos que fazer isso mais vezes. Com todas as instituições.
— Você está certa. — Recebi um beijo na cabeça. — Acho que alguém dormiu. — Sussurrou.
Olhei para a bebê dormindo nos braços de Julian e sorri. Quando me afastei para chamar por Emily, percebi o olhar de Martin, ele deu um sorriso com orgulho e assentiu. Eu não sabia o que significa exatamente, mas sentia estar no caminho certo.

Três meses depois

— Para onde foi hoje depois do enterro?
Julian perguntou me abraçando por trás enquanto estávamos deitados na cama.
— Não vai brigar comigo?
— Meu amor, é claro que não. Por que acha isso? Você acabou de perder seu avô, me disse que queria um tempo sozinha, mas fiquei preocupado.
Enxuguei as lágrimas novas e virei de frente para ele.
— Fui ao orfanato, ver Ruby. Eu só... Precisava.
— Amor...
— Sei que conversamos sobre o apego nela, mas... Eu só precisava Julian. Eu só precisava me sentir bem novamente. E ela está tão grande, está quase ficando em pé sozinha. — Eu sorria enquanto falava. — Emily disse que ela adorava balbuciar como se estivesse conversando como gente grande.
— É eu sei, ela me disse o mesmo. — Ele sorriu e acariciou meu braço. — Não vou brigar com você por ir vê-la, Lanna.
— Conversamos aquele dia, você disse que seria bom nos afastarmos um pouco.
Julian suspirou e ajeitou o braço atrás da cabeça encarando o teto.
— Sei o que disse. Criamos um afeto muito grande por Ruby, ela é perfeita e está mesmo esperta. Disse aquilo por que temo por ela.
— Acho que sei onde quer chegar. Não sei se quero falar disso.
— Talvez nós precisamos falar. Somos presentes na vida dela, Lanna. A cada fim de semana ou folga, ou momento disponível estamos lá para vê-la. O que estamos fazendo?
— Nós estamos lá pelas outras crianças também. Vamos aos jogos de futebol, ajudamos com a escola. Nós visitamos todos.
— Não quero ser o monstro aqui, Lanna. Apoiamos mais dois orfanatos em Seattle. Não fazemos visitas extracurriculares em nenhum outro.
— Por que eles são mais distantes e não conseguimos conciliar com nossa agenda como fazemos com o orfanato onde Ruby está, apenas isso.
— Lanna?
— Sim?
— Eu a amo e sei que você também a ama. Todas as crianças ali. Amamos todos. Mas Ruby é especial.
— Ela é.
Julian me abraçou suspirando.
— Não saberei me afastar, acho que você também não.
— Estamos fazendo algo tão errado assim? Damos atenção para órfãos. Nossa como somos horríveis.

#Julian

Ela levantou bruscamente da cama e amarrou o cabelo solto num coque, enquanto saía do quarto. Decidi dar um tempo para ela, mas quando se passou uma hora e Lanna não subiu de volta eu resolvi ir atrás dela.
Encontrei ela dormindo no quarto de hóspedes. Meu coração apertou por aquilo. Ela estava se fechando novamente? Apesar de não ser uma surpresa, a morte do avô foi impactante para ela. Eu tinha visto Lanna em luto e ela se ergueu tão bem, não queria ver ela retroceder. Me agachei na frente dela e toquei seu rosto com carinho, ela abriu os olhos lentamente.
— Não quis encher sua cabeça de coisas. Só queria que conversasse comigo, desculpe. Seu avô morreu e eu não queria que se fechasse novamente.
— Meu avô morreu. — Ela afirmou ainda me encarando.
— Lanna...
— Meu avô morreu, o sofrimento dele acabou. Estava me ferindo vê-lo daquele jeito, quase fisicamente. Meu avô morreu, e está tudo bem agora. Eu não vou me fechar novamente, por que sei que... Eu entendo que, depois de tudo o que ele passou, estava cansado e sofrendo. E isso acabou. Estou aliviada por ele não estar sofrendo. Estou aliviada por não viver cada dia com medo de receber uma notícia de que sua condição piorou, mas ele continua vivo. Posso ser uma pessoa horrível por isso, mas estou aliviada, Julian. E eu precisava ver Ruby pra não me odiar por estar aliviada.
A encarei e suspirei deitando ao seu lado novamente. A abracei como na noite em que recebemos a ligação informando que Henry tinha falecido. Lanna chorou e chorou a noite inteira, mas eu a abracei até que ela estivesse bem o suficiente. Como fiz em seu aniversário aquele ano quando ela quebrou o ritual de dormir no quarto do irmão.
Durante o resto do ano eu a abracei, no aniversário de morte de sua mãe, a abracei quando ela venceu suas lutas, fazendo seu nome tomar forma. Eu a abracei e a amei por cada noite que passávamos juntos. Eu me lembrava da garota que conheci e agora via a mulher que se tornou. Nossas vidas eram perfeitas, nós construímos daquele modo, e por que não dar mais um passo para frente?
Quando era mais jovem, meu pai havia presenteado a minha mãe com um anel e brincos ao pedir sua mão. Quando Steve disse estar pronto, recebeu o anel, herança da família para dar a sua esposa. Eu herdei os brincos, fazia anos que eu os possuía. E depois de um ano e alguns meses morando junto com Lanna, eu tive ainda mais certeza de que a faria minha esposa. Mas nós poderíamos ir com calma. Ou poderíamos fazer como fazíamos desde sempre. Viver sem arrependimentos e dar mais um passo.

Dois meses depois — Lanna.

Observei o casal que estava de visita com Ruby nos braços. Eu preferi manter-me afastada, claro que não atrapalharia aquela visita, e o casal realmente parecia gostar da garotinha de um ano que agora sorria para eles. Mesmo assim, eu não conseguia evitar o aperto no peito e parar de contorcer os dedos. Eu tinha decidido chegar antes de Julian naquele dia e fui surpreendida quando a cuidadora disse que Ruby estava no meio de uma visita. Em meses ninguém havia ido visitar a garotinha e quando eu tinha tirado um dia de folga para ir ficar com a menina que havia roubado meu coração, eu me deparei com aquela cena. Eles a levariam? Mal a conheciam. Não saberiam por ela para dormir como eu havia feito diversas vezes, e com certeza isso deixaria a bebê irritada com uma péssima noite de sono!
Droga. Não podia continuar pensando dessa forma, era uma chance de Ruby ser feliz com uma família, e o que eu tinha oferecido até o momento? Afinal qualquer bebê dorme quando se é balançado e cantam uma música de ninar para eles. Usando o pensamento como desculpa eu deixei o corredor onde estava e desci para ficar um pouco com as crianças do lado de fora. Havia um garotinho também, fazia com que eu me lembrasse sempre do meu irmão, então eu adorava conversar com ele. Ele preferia esconder, mas vez ou outra eu percebia o sorriso contente que ele me dava.
— Oi Andrew.
— Oi Lanna. O Julian não vem?
O garotinho sentou ao meu lado enrolando a corda de um pião.
— Ele vem mais tarde. O que você tem aí?
— Um pião, eu ainda estou aprendendo a jogar. Você sabe fazer ele girar?
— Não, desculpe. — Fiz cara de sofrimento e então sorri. — Mas podemos aprender juntos.
O sorriso que o garoto deu tirou toda a tristeza que eu sentia naquele momento, então eu passei algumas horas com Andrew e as outras crianças até que Julian chegasse. Como em todas as outras vezes ele trouxe presentes deixando as crianças eufóricas.
— Por que está aqui fora? Ruby está dormindo?
Eu sorri tentando disfarçarbe então me preparar para a resposta, mas foi nesse momento que o casal saiu de dentro do grande casarão e deixou Ruby nos braços da cuidadora indo em direção as outras crianças, eles sorriram e acenaram para nós que retribuímos. Nenhum sinal de reconhecimento.
Adiantando-me fui até a cuidadora, esticando os braços para Ruby que se pôs para frente animada em reconhecimento.
— Oi princesa. Parece que você está tendo um dia agitado hoje. — Brinquei.
Senti a mão de Julian em minhas costas, induzindo-me a entrar no casarão. A cuidadora nos seguiu parecendo já saber o que iríamos questionar, mas eu estava sem coragem e agradeci por Julian tomar a frente.
— Eles vão levá-la?
A cuidadora inclinou o rosto observando nós dois.
— As crianças pequenas, como a Ruby, sempre recebem mais visitas e atenção. Muitos casais procuram adotar bebês, por isso temos tantas crianças mais velhas por aqui.
— Então está me dizendo que querem adotar Ruby?
— Sr. Emerson...
— Emily — Chamei — Só precisamos saber. Queremos o melhor para Ruby.
— Todos sabemos o quanto vocês gostam de Ruby, ela também gosta de vocês. Mas não pode ficar esperando, outros casais se interessarão. Como o casal lá fora. Ruby é uma forte opção para eles, ficaram encantados.
Prendi a respiração mordendo o lábio e decidi dar toda a minha atenção para Ruby, não queria ficar com mais nada na cabeça, então me afastei de Julian e a cuidadora Emily.
Ruby estava agitada em meus braços quando me sentei no sofá de frente para uma janela, sorri quando a mãozinha da menina pousou em meu rosto.
— O que você achou? Gostou deles? Vai ser feliz com eles, Ruby?
A menininha só fez sorrir e botar a língua para fora.
— Eles parecem terem gostado de você, o que é ótimo. Vão ser perfeitos para você Ruby, e eles parecem ter bastante dinheiro, você vai poder ser e fazer o que quiser. Gostou disso?
Ruby resmungou e chutou com as perninhas curtas querendo ir para o chão, a apoiei no joelho e deixei a garotinha brincar com minhas tranças que caíam em meus ombros.
— Vocês estão bem? — Julian perguntou ao sentar ao meu lado.
— Alguém está muito agitada hoje. — Sorri fraco e deixei que Julian segurasse Ruby.
— Quer conversar, amor?
Franzi o cenho aparentando estar confusa, mas sabia que Julian enxergava a verdade em mim como nunca, então apenas balancei e baixei a cabeça.
— Aqui não.
Julian deixou como estava então, ficamos um tempo com Ruby até a garotinha estar cansada demais e dormir, como sempre, nos meus braços. Fomos embora somente depois de ajudar algumas crianças com suas lições e mais brincadeiras. Nossas visitas eram frequentes naquele orfanato, e todos estavam acostumados conosco. Já era noite quando entramos no carro e seguimos para casa, Phillip dirigia o carro em silêncio, como de costume.
— Emily disse que uma hora ou outra isso ia acontecer.
— Eu sei. — Eu não quis me fazer de desentendida. — Mas...
— Ela disse também que deveríamos nos decidir. Antes que fosse tarde demais. Sei que nunca mais conversamos sobre isso, mas...
— Eu não sei quando comecei a sentir essas coisas, Julian, mas Ruby... Quando os vi com ela hoje, eu só queria chorar, pegar ela em meus braços e nunca mais soltar.
— Eu sei, eu também amor.
— Mas ela merece ser feliz, merece ter uma família.
— E você também. Nós também.
Olhei para Julian e suspirei quando o carro parou na garagem subterrânea do prédio onde morávamos. Segui na frente sabendo que Julian estaria logo atrás. Julian só voltou a falar novamente quando eu saí do banho com uma toalha enrolada na cabeça.
— Sei que você ama Ruby, eu também, Lanna. Precisamos ter essa conversa, não acha?
— Precisamos mesmo. Mesmo assim, eu não acho que vamos resolver.
— Por que não?
— Por que não estamos preparados, estamos? Só tenho vinte e um anos. Sou confiável para adotar uma bebezinha? E nossas carreiras?
— Conseguimos dar um jeito nisso, assim como Sophie deu.
— Sophie estava preparada para isso, foi escolha dela com o marido dela.
Julian ficou em silêncio e em seguida estendeu a mão para mim, quando a aceitei, ele me puxou para perto, deixando-me entre suas pernas enquanto sentava na beira da cama.
— Você está certa, teria que ser uma escolha nossa. É uma decisão para se tomar de cabeça fria. Você tem razão, é nova demais, será tudo no seu tempo. Eu estarei aqui. — Ele beijou de leve minha barriga. — Talvez até possamos ter o nosso próprio, no nosso tempo.
Franzi o cenho e toquei o ombro dele me afastando.
— O quê?
Vi quando ele percebeu ter dito a coisa errada. Minha respiração começou a acelerar, já sabia que um dia essa conversa chegaria, sabia que Julian nunca desistiria da ideia de ser pai, e eu tinha achado que estava tudo bem quando dei indícios de que uma adoção não seria um problema. Mas termos filhos? Uma gestação? Não era e nunca fora uma opção para mim.
— Desculpe, eu só estou dizendo nossas opções.
— Achei que tinha deixado bem claro que filhos biológicos jamais seria uma opção, você disse que estava de acordo com isso.
— Eu disse que no momento certo teríamos essa conversa, Lanna. — Julian levantou me encarando. — Então vamos conversar. Apenas me ouça.
— O que você tem a dizer, Julian? Vai tentar me convencer que ter um bebê é uma boa ideia? Que nada vai acontecer? Você não pode garantir isso.
— Podemos ter filhos saudáveis Lanna, não pode deixar esse seu receio te impedir de viver. Nos atrasar.
— Meu receio Julian? — Elevei o tom começando a andar de um lado para o outro. — Eu sabia que seria assim, sabia que um dia você ia ver que quer algo que não posso te dar.
— Você pode, só não quer. Eu entendo isso.
— Você respeita isso?
— O quê? — Ele franziu o cenho. — É claro que sim.
— Eu acho que não, senão não estaríamos tendo essa discussão. Você diz que tenho meus receios. Me baseio em fatos, Julian, e eu seria uma pessoa horrível se os ignorasse.
— Lanna, entenda de uma vez por todas... Eu te entendo e te respeito, mas sei o que você quer. Você pensou e muito a respeito, eu vejo você com Ruby. Sei que será uma mãe incrível e nosso filho seria perfeito.
— Você não pode garantir, Julian! Você não pode dizer que um filho nosso seria perfeito, saudável. Olhe para minha família! Um pai beirando o alcoolismo, um avô com demência, mãe e avó com câncer de mama, os pontos negativos também não vem só da minha família, sua própria avó foi uma vítima do câncer. Como você não pode enxergar os riscos e sofrimentos que poderíamos trazer para alguém inocente? Como pode esquecer isso só para atender um capricho seu? — Eu segurava o choro, a voz já embargada.
— Um capricho meu? Agora você está falando besteira. Eu sei muito bem dos riscos, mas sei também que isso pode não acontecer.
— A diferença entre nós é que eu não estou afim de arriscar.
— Você nunca está afim de nada, Lanna, essa é verdade. Todos têm sempre que ficar empurrando até você enfim tomar coragem e fazer algo!
Somente o encarei tentando entender de onde ele havia tirado aquilo, mas estava cansada e não iria discutir mais. Fui direto para o closet pegando uma mochila e colocando algumas roupas para a noite, Julian me seguiu e ficou observando da porta de braços cruzados.
— Onde você vai?
— Pra casa.
— Sua casa é aqui.
— Não é o que parece agora. — Vesti minha calça jeans virando de costas para Julian, assim evitei que ele visse as lágrimas. — Nunca brigamos assim, Julian. Precisamos de um tempo.
— Não vamos dar um tempo, isso é uma desculpa para um término. Não estamos terminando.
— Você não decide isso sozinho, Julian.
— Lanna... Por favor.
— Preciso pensar, Julian, longe de você. Acho que você também precisa.
— Vamos sentar e conversar, por favor, estamos falando de algo importante.
— Não estamos com humor para conversar, qualquer coisa daria numa discussão. Eu vou ficar com meu pai, por favor, não me procure. Apenas me dê espaço.
— Sempre te dou tempo e espaço, Lanna, no único momento que estou te pedindo para ficar você não pode fazer?
Enfim olhei para Julian e deixei a mochila sob meus pés. Estava profundamente magoada por muitos fatores, mas ouvir o que ele disse só fez com que a mágoa crescesse.
— Posso falar primeiro?
Ele assentiu desviando o olhar e voltando para o quarto, nós dois continuamos de pé, os nervos à flor da pele.
— Você me magoou retornando nessa história. Me magoa você ainda pensar que isso seria possível, que eu mudaria de ideia.
— Nunca faço nada na intenção de magoar você, eu queria apenas que pudéssemos pensar juntos em todas as nossas opções. Eu quero você em minha vida, quero construir nossa família, eu preciso que esteja comigo nessa.
— Sabe que é o que eu quero também. — Cruzei os braços me encolhendo. — Mas não dessa forma. E se você acha que é uma opção, isso não vai dar certo.
— Nós tomamos todo o cuidado para que você não engravide. Mas nem tudo é 100% seguro, e se você engravidasse acidentalmente? Iria preferir o aborto do que ter nosso filho?
Olhei chocada para ele e desviei o olhar me preparando para responder.
— Se fosse possível ter a certeza de que nada aconteceria, eu teria Julian, é claro que sim. Mas não é possível e eu prefiro o aborto ao invés de ter uma criança e fazê-la carregar essa doença, ou passar pelo que eu e minha mãe passamos. Não me olhe assim, como se eu fosse uma pessoa desprezível.
— Não estou fazendo isso.
— Sim, você está. Eu não vou arriscar nada. Não há nada que vá fazer eu mudar de ideia. Você precisa aceitar isso, assim você vai me aceitar por inteiro, enquanto isso não acontecer, não vou estar aqui.
— Lanna, por favor...
— Chega Julian, eu não aguento mais discutir sobre isso. Você não vai me fazer mudar de ideia. Eu vou adorar ter uma família com você, podemos adotar tanto quanto possível e encher nossa casa de crianças. Eu abri uma exceção por que eu sei que serei uma boa mãe, eu sinto que quero isso e mesmo assim eles ainda podem sofrer se eu vir a ter câncer. Mas não vou passar isso para outras pessoas.
— Pare de agir como se fosse uma IST! Estou cansado, Lanna, extremamente cansado de ouvir você falar como se fosse a pior doença do mundo.
— É uma doença que pode matar, e se isso não é a pior coisa do mundo pra você, eu sinto muito. Eu terminei por aqui. Te procuro quando esfriar a cabeça.
— Não faça isso, fique comigo.
— Eu não posso Julian.
Ele se aproximou enquanto eu balançava a cabeça, tocou meu rosto e me puxou para perto colando nossos lábios.
Retribuí o beijo, surpresa pela ação inesperada. Tudo o que eu queria era que estivéssemos bem, odiava aquela discussão, odiava que pensávamos diferente, mas eu estava decidida, era Julian quem deveria decidir se continuaria comigo ou não. Me afastei mordendo o lábio.
— Eu te amo, Julian. Mas você precisa saber o que realmente quer.
— Eu quero você, amo você Lanna. É só isso que importa.
— Não, não é só isso e você sabe disso.
Voltei ao closet para pegar a mochila e saí de casa sem ouvir Julian. Meu pai me recebeu surpreso, mas me acolheu e conversou comigo, me deu conselhos e prometeu matar Julian como eu esperava que ele fizesse. Fui dormir em meu antigo quarto depois de muito tempo. Não recebi uma mensagem de Julian e nem pensei em enviar. Nós precisávamos desse tempo.
Mas não bastou que eu conversasse com meu pai, no minuto seguinte estava ao telefone com Pietro relatando tudo e querendo estar por perto para abraça-lo.
— Por que não vem me visitar? Podemos passar o tempo que for preciso juntos.
— Eu tenho que treinar, não posso fazer isso.
— Você pode treinar comigo.
— Agradeço o convite, Pietro, mas estou bem aqui. Eu vou dar a ele três dias e então vamos conversar novamente.
— Ele conseguiu fazer eu gostar ainda menos dele. Achei que ele compreenderia. Quanto a Ruby, sei que aquela menina é especial pra vocês. Vocês podem resolver tudo isso depois, com mais calma. Na verdade, eu recomendo que me deixe ter uma conversa com Julian primeiro.
— Você ou seu punho quer conversar com ele?
— Meu punho quer isso há muito tempo. — Eu tive que rir daquilo.
— Não é assim que vamos resolver as coisas Pietro.
— Mas me faria tão bem. — Murmurou tristonho. — Só quero você bem, você não precisa dele.
— Eu preciso, sei que você pode me entender. Isso é algo ao qual temos opiniões diferentes. Ele vai aprender.
— O convite pra vir ficar comigo vai continuar de pé.
— Obrigada Pietro, boa noite.
— Boa noite, gatinha.

Thunder - Lutar é Preciso [LIVRO 1]Onde histórias criam vida. Descubra agora