— Não vai comer? — perguntou a voz masculina, enquanto puxava a cadeira de ferro.
Os olhos amarelados mal resistiam abertos à luz branca que preenchia o cômodo de três metros quadrados. As pálpebras evidenciavam ainda mais o olhar lânguido que compunha os traços cansados e perturbados da jovem, que mantinha os braços sobre as pernas. Imóvel como um corpo mumificado, ela mantinha as íris fixas no prato à sua frente. Todavia, não prestava atenção alguma no alimento. Enquanto o queijo derretia-se tal qual borracha queimada, os pensamentos dela dançavam outra melodia, em um local de sua mente aonde ninguém mais podia adentrar.
— Ei! — O homem bateu duas vezes na mesa, fazendo com que a água do copo ao lado tremesse em ondas. — Eu fiz uma pergunta.
— É a terceira vez este mês — ela disse, finalmente, sem desviar os olhos do seu imenso vazio.
Desentendido, ele franziu o cenho.
— Que tentam me persuadir com esse queijo de péssima qualidade. — Manuela ergueu as pupilas e encarou o Delegado Superlativo da Guarda Unificada. — Eu não quero.
O Delegado soltou o ar pela boca, olhando para os lados.
— Tudo bem, Senhorita Orlando. Por que não diz a verdade, para negociarmos de uma vez a sua condicional?
— Acha que eu não quero sair daqui? — Ela molhou os lábios e deu um riso sarcástico. — Eu já disse que não sei de mais nada. Germano era... — Os olhos dela piscaram algumas vezes, dando passagem a uma lágrima discreta que desceu vagarosa pela bochecha esquerda.
— Um traidor.
— Uma excelente pessoa! — rebateu Manuela, antes de engolir em seco. — Homero o obrigou. O meu Germano jamais faria uma coisa daquelas sem um intento válido.
— Se não sabia de nada, como tem tanta certeza?
— Eu dormi ao lado dele por vinte dias. Compartilhamos sonhos, perdas, memórias. Falamos sobre coisas íntimas, e eu posso garantir que se tem alguém que foi coagido a algo, era ele.
— Catarin.
— O quê?
— O que tem a dizer sobre ela?
— Nem ao menos éramos próximas no Castelo das Pedras. Eu disse isso no meu primeiro depoimento. — Parecia impaciente.
— Então não se importaria se ela morresse — afirmou o Delegado, pondo as mãos cruzadas sobre a mesa.
— Catarin é uma assassina. Quem se importa com os assassinos?
— Mais gente do que eu gostaria — disse ele, em desabafo.
— O que quis dizer com isso? Ela...
— Morreu. Encontraram o corpo queimado, dentro do banheiro da cela prioritária.
— Pelo menos morreu com algum luxo. — Manuela sorriu de lado, relembrando o pequeno cômodo no qual estava presa. — Grande segurança — afirmou com ironia. — E por que ela estava lá? Eu também era par de um dos filhos de Homero.
— Fontes disseram que ela sabia de coisas sobre o jogo antes de acontecerem. O que nos levou a crer que ela sabe muito mais que você.
— Então por que me mantêm aqui? Não sou eu quem vocês querem.
— Ainda é suspeita, Senhorita Orlando. — Ele se levantou e empurrou o sanduíche à moça. — Coma, Manuela. — Sorriu com dubiedade, preso num dilema entre ser gentil ou firme. — E pense direito sobre o que quer fazer.
O homem virou-se de costas e abandonou a sala. Assim que tomou o corredor, percebeu a figura de seu braço direito, um dos soldados da Guarda Unificada, aproximar-se com pressa. Tinha um papel extremamente alinhado em mãos.
— Delegado — disse o rapaz, com a voz entrecortada.
— O que houve? — Ele parou em frente ao bebedouro e tomou o papel que lhe era estendido em afoiteza. — Mas isto é...
— Uma ordem do Rei Jonathan.
— Mas não era esse o combinado — exprimiu o Delegado.
— E o que faremos? — indagou o soldado.
— Bem — Suspirou o superior —, é uma ordem real. Faremos o que foi requerido. — Ele devolveu o papel ao seu subordinado. — Chame os guardas, diga para que preparem tudo para a soltura de Manuela Orlando.
Já era madrugada. O sereno banhava a janela fechada, fazendo com que a luz dos holofotes do castelo refletisse na pele do príncipe. Não conseguira dormir, permanecera a noite inteira com Aveta em seus braços, guardando o seu sono. Sabia que não haveria maneira de convencê-la a ficar, e temia tudo de ruim que poderia acontecer naquela viagem.
— Já está acordado? — perguntou a princesa, sem abrir os olhos.
— Sim, meu amor — respondeu ele, despejando um beijo carinhoso na testa da moça. — Está quase na hora de partirmos.
— Eu sei. Sempre acordo no horário certo, seja ele qual for. — Ela abriu os olhos e se sentou, puxando todos os fios de cabelo para cima do ombro direito. — Vou me trocar.
— Eu vou pegar algumas coisas a mais para levarmos. Afinal de contas, não é uma lua de mel.
— Um pouco de adrenalina faz bem para o relacionamento — disse ela, tentando convencer a si mesma de tal fato.
A princesa encaminhou-se ao toalete, e, como fora dito, Laerte foi na direção oposta, onde se encontravam as malas e os seus pertences.
O rapaz tomou o cuidado de selecionar uma lanterna, as luvas táticas da princesa, o tabuleiro de Xadrez e o seu amado relógio. Precisava sentir a presença do pai em momentos de perigo, e aquele objeto era o que ele tinha de mais precioso. O príncipe ajeitou tudo dentro da mala principal de Aveta, a que continha mais espaço. Depois, ouviu os passos da princesa, que caminhava em sua direção. Por mais que fosse uma situação perigosa, ele não conseguiu disfarçar o olhar apaixonado e admirado. Os cabelos presos no topo da cabeça em um rabo de cavalo perfeito que desabava sobre as costas cobertas pela jaqueta vermelha deixavam-na com ar de uma verdadeira soberana.
— Laerte — ela o chamou, com os braços cruzados.
— Oi — respondeu sem jeito, descendo os olhos para as botas altas que a moça calçara. — Já está pronta? — Pigarreou.
— Sim. Vou ver se os outros já estão saindo, enquanto se troca. — Ela se aproximou dele, devagar, e deu-lhe um rápido beijo nos lábios.
— Eu te amo, Aveta — ele disse.
— Eu também. Mas não fale mais assim.
— Como?
— Como se fôssemos morrer.
Três batidas na porta quebraram o silêncio de agonia que se instalara.
— Deve ser o meu pai. Já volto.
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O Jogo Da Realeza - Lidium (Livro 2)
Roman d'amourATENÇÃO: Este livro é a continuação de O Jogo Da Realeza. A leitura desta obra depende da leitura do volume 1, disponível aqui no perfil. O jogo nunca acaba. Os adversários se modificam, se adaptam e são substituídos. A estratégia muda. Quem perd...