1 - O vento

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Começou quando o vento levou a minha avó. O mesmo vento que, naquele dia, entortou o meu pé. Vovó sempre dizia que esse dia chegaria. Quando estava na cozinha e via passar um vento no quintal, ela ficava distraída, como se estivesse em outro mundo. Depois olhava para mim e, por cima dos seus óculos, com uma autoridade afetuosa, me avisava para evitar o quintal quando passasse aquele vento.

Eu acreditava. Uma vez ela me chamou para ver um prato quente de feijão, que ela estendia na direção do quintal, espatifar-se. O vento, ela dizia, mexe com tudo o que existe. É capaz até de entortar o olho da gente. E perguntava: se eu não sabia que lá no mar, aquelas ondas eram obras dele. Se eu não sabia que toda pedra era esculpida por ele. Se eu não tinha medo de uma coisa assim rodopiando por aí, mexendo com o mundo.

Eu me benzia e achava aquilo a coisa maior do mundo. Eu nunca tinha visto o mar. Nunca tinha saído nem da vila. Só plantando e colhendo e ordenhando todo dia. Aquelas imagens todas me deslumbravam.

E eu, ao invés de perguntar ou desconfiar de qualquer mentira ou caduquice da vovó, ficava encantado com a sua força, determinação e coragem, de descer ali para o quintal, em meio aos lençóis esvoaçantes, sem ser sequer balançada pelo vento. A minha avó era muito forte.

Até que chegou o dia e o vento invadiu a nossa casa. Eu estava ainda dormindo, quando ele entrou. A vovó teria esquecido a porta aberta? Despertei com aquele barulho de assovio na calha e as portas batendo com força. De pescoço estirado, não tive logo coragem de sair do quarto. Mas o vento crescia tanto que me preocupei com minha vó lá fora. Abri a porta do quarto e o que vi foram portas e janelas escancaradas, movimentadas à toa pela ventania. Tampei a respiração e fui correndo pela casa toda, mas não a encontrei. Já mergulhado no vento, disparei para o quintal. As árvores balançavam muito. Chamei pela vovó, tentando enxergá-la no fundo. Vi só quando ela já rodopiava no céu, cada vez mais longe até virar um pontinho indefinido no horizonte.

Até hoje ela não voltou e a sensação daquele vento não parou. Às vezes, ele amansa, às vezes, vem mais forte. Aprendi as outras variações dele, de tanto tempo que fiquei, ali pela cozinha, olhando-o passar. Para onde ele tinha levado a minha vó? De tão zangado, não fugi mais. Desobedeci. Deixei-o chegar mais e mais perto de mim. Queria que me levasse também. E zombeteiro, ele entrava e saía da casa quando e como bem queria. Eu não me importava. Minha vó sempre dizia que quando eu ficasse sozinho sem ela, tudo ia mudar no mundo. Que eu não me assustasse, se nesse dia mesmo, até os meus pés começassem a entortar, virando ao contrário, procurando para onde caminhar.

Foi dito e feito. No dia em que aquele vento levou minha vó, ele entortou os meus pés. Eu senti cada movimento do giro estalando meus ossos. Doía. Parecia que se quebravam. Nem quis olhar, enquanto uma brisa passava lá embaixo. Eu temia estar me espatifando. Não me movi por dias para não me estraçalhar e ficar sem ver o momento em que o vento a traria de volta. Ele não trouxe.

O DESPERTAR DO CURUPIRAOnde histórias criam vida. Descubra agora