Aquela era a primeira vez que eu saía da vila. Planejei ir sem falar às minhas vizinhas. Mas achei que aquilo seria uma traição. Além disso, a impressão da noite anterior apertava o meu coração. Deveria mesmo deixar minha amiga ali e ir embora?
Resolvi me despedir de Larissa e, para a minha surpresa, ela disse que também queria ir embora. A princípio, não sabia se ela falava sério. Mas com a insistência da sua fala, suspeitei que não iria embora sozinho. Ela até se animava com o pensamento, como se fosse a melhor ideia do mundo, que ela não tinha cogitado com tanta clareza até saber que eu poderia ir com ela.
Depois de decididos, fomos com toda a inocência falar com Dona Cosminda, que mais soluçava do que respondia. Percebi uma pressa esquisita nas duas, que se entendiam com olhares e silêncios, me deixando perdido.
Alcançamos o circo antes que ele saísse da vila. Larissa me puxou e nos penduramos no último caminhão, olhando Dona Cosminda acenar e assentir com a cabeça mais para si mesma do que para Larissa. Ela nos prometeu que cuidaria de Juca quando ele saísse da prisão, para que aquilo não se repetisse.
Na saída da vila, vimos o homem mal passando a cavalo, sem nos ver. Ele estava muito sério, os seus olhos estavam vermelhos e sua pele manchada de poeira. Parecia muito bêbado. Dona Cosminda seria forte, assim como a minha avó. Mas talvez fosse melhor que não fosse tão forte, para que o vento pudesse levá-la dali também.
Durante a viagem, Larissa ficou muito séria. Até que vi que ela começava a cansar, cochilando. Percebi, então, que podíamos subir naquele caminhão sem sermos vistos. Lá em cima nos cobrimos com uma lona, e ela pôde, enfim, dormir. Parecia que um grande peso evaporava de si. Não sei se a libertando ou a consumindo. Só tinha certeza de que ela precisava descansar e velei o seu ronco.
Cuidando do seu sono, acabei eu também dormindo. Quando acordamos, não havia mais movimentos, nem estávamos no automóvel. Podíamos ver o céu aberto. Estávamos encostados em uma árvore. Lembrei repentinamente dos meus pés e suspirei aliviado por conferir que estavam ainda cobertos. À nossa frente, duas pessoas cuidavam de uma fogueira. Começava a anoitecer.
Perguntei onde estávamos. Um deles riu e nos mostrou para o outro. Caminhando na nossa direção, observei que o homem risonho tinha os pés entortados para os lados. Logo eles se revelaram como os responsáveis pelo caminhão da retaguarda. Mas ainda não haviam decidido se nos entregariam ao resto da trupe. Riam mais, agora os dois. Jurei que queria trabalhar com eles. Riram mais uma vez de mim e, em desespero, pela noite que chegava, pela impressão da voz do velho ranzinza na cabeça e por Larissa, tirei bruscamente as botas e revelei os meus pés.
No escuro, não acreditaram no que viam. Aproximaram-se e tocaram. Eu senti repulsa não sei se de mim ou deles. Larissa apertou os olhos, boquiaberta, tentando entender. Quando ela tocou, foi como se a própria luz de raios de sol de todos os dias a iluminando na porta da minha casa tivesse naquele momento me tocado, não só nos pés, mas em cheio em mim.
Ela não disse nada. Ou, se disse, eu não ouvi. Os homens discutiram entre si e, no fim, o do pé torto convenceu o outro a nos manter escondidos a noite toda, pois pela manhã os ânimos de todos estariam melhores. Esse homem piscou para a gente e acreditamos na sua bondade, que minuto a minuto daquela noite se confirmou.
Não conseguimos mais dormir. Em cima do caminhão, estávamos totalmente cobertos de estrelas no céu e uma luz minguando. Larissa olhava para mim, o azul da noite iluminava o seu rosto, dando um brilho mágico aos seus olhos.
Vi quando ela abriu os dentes em um sorriso noturno que foi tão bom quanto o seu toque no meu pé. O que ela falou não me lembro muito bem. Só lembro que me embalou tanto, como se os meus pés tortos pudessem ser tortos mesmo e não houvesse problema nenhum. Mais ainda, parecia que era até bom que assim fossem, que aquilo, os meus pés virados, fossem um tesouro descoberto por nós. Lembrei da minha avó e me emocionei. Ela nunca viu os meus pés tortos. Tudo havia mesmo mudado com aquele vento. Mas uma das coisas que mudou, e era boa, estava bem ali me envolvendo com uns olhos brilhantes e noturnos.
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O DESPERTAR DO CURUPIRA
FantasíaUm garoto perde a sua avó de um modo inesperado, virando a sua vida literalmente do avesso. Agora ele terá que encarar o mundo e os seus perigos, mas, ao contrário do que esperava, não estará sozinho nessa jornada de inusitadas descobertas, envolven...