13 - Um canto amargo

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Após o nosso retorno, parecia que o dia a dia na vila se mostrava mais claro. Da janela, eu via mulheres com trouxas de roupa na cabeça, segurando crianças, ouvindo assobios maldosos e gritos dos homens. Também via homens humildes fazendo qualquer serviço em troca de cachaça e comida para os filhos. Homens com olhos sempre avermelhados, imaginei, pelo vento, que ainda passava. Via também meninos mais novos do que eu carregando lenha, lixo, capinando, trabalhando em outra família, de favor. Era uma rotina triste, que, enquanto estava sentado ao lado da vovó na calçada, eu não percebia. Mas agora sei o que ela via. Como mudar aquela realidade? Como proteger aquele povo, que já se maltratava um ao outro e agora estava prestes a conhecer um mal maior vindo da cidade? Aquilo me parecia indecifrável, mais difícil do que os perigos da mata.

Não havia correntes, mas todos pareciam carregá-las como um peso, que fazia aquelas cabeças ficar mais abaixadas a cada dia. Lembrei das festas juninas e entendi toda a empolgação, toda a entrega. Todos se enfeitavam e pareciam ser outros. Pareciam mais felizes.

Mas entre a gente, haviam alguns homens, como o pai de Larissa, que defendiam aquela vida dura. Dizia que aquilo era valor, que o sofrimento era necessário para dar dignidade. Eu só via aquele homem bêbado e zangado. Achava mesmo que o mundo fosse daquele jeito e pronto. Que o pai de Larissa só podia ser daquela forma. Via aquela paisagem humana toda pronta e dura, inquebrantável.

A volta à vila, com toda aquela visão, não havia sido nem um pouco tranquila. Dentro de casa, eu ficava com o ouvido na parede, tentando ouvir o que acontecia na casa de Larissa, apreensivo. O mundo era perigoso.

Lembro de um dia eu ter tido pena daquele homem. Ele andava já muito bêbado na rua, sujo, fedorento, com os cachorros latindo para ele. Sentia compaixão. Ele olhava para as pessoas nas portas de suas casas e gritava com elas, achando que estavam rindo dele. Nas festas, era sempre o último a ir embora, chegando, às vezes, a dormir pelas calçadas. Vi algumas vezes Larissa e Dona Cosminda carregando aquele homem digno da minha pena para dentro. Mas agora não. Agora eu sempre lembrava das lágrimas de Larissa e aquilo mexia comigo, como um ímpeto.

Dias após nosso retorno, estávamos Larissa, Juca e eu na calçada e Dona Cosminda debruçada na janela. Estávamos vendo de longe uma reunião que se organizava no centro da vila para preparar a recepção de Mendonça.

As pessoas batiam boca. Alguns diziam para não deixarmos mais o prefeito entrar na vila, muito menos Mendonça, que se achavam donos da gente. O pai de Larissa estava no meio dessa reunião e bradava, com palavras de ordem, falando em moralizar aquele lugar, que era necessária a volta dos Mendonça, daquela gente de respeito.

O representante do prefeito começou a falar, tentando silenciar aquela gritaria. Falou que tudo seria mesmo organizado. Que não precisava ninguém perder nada, mas que a Justiça é que mandava. Se a terra era do homem, que era o seu direito. Que se nem todos poderiam ter o que queriam com a reorganização do lugar, que deveriam agradecer a Deus por aquele homem ainda permitir que todos ficassem. Aquilo era para o bem comum.

Começou uma confusão de vozes e falas e ele foi falando nomes de famílias e moradores que iriam ganhar trabalho com a vinda de Mendonça. Todos foram silenciando, esperando falar o seu. Quem era contemplado comemorava. Mesmo os resistentes, davam um sorriso discreto e iam se encostar em algum muro. A lista prosseguia e o nome do pai de Larissa não era citado. Ele andava de um lado para o outro, muito tenso, olhando o chão e, ao fim, sem ser contemplado, começou a voltar para casa, em nossa direção, resmungando. De longe, ouvíamos que ele continuava a bradar pela vinda de Mendonça, mas seus olhos faiscavam.

Larissa ficou com muito medo. Dona Cosminda disse para irmos para a minha casa. Entramos e ela fechou a janela, quando o homem entrou pela porta.

Na minha casa, Juca lembrou da nossa promessa. Se iríamos salvar a vila, tínhamos que conseguir salvar Dona Cosminda. Concordamos e começamos a planejar. Pensamos em um plano. Iríamos pelo quintal.

No quintal, ventava e eu lembrei da visão daquele saci no muro. Não havia nada, mas o vento agora me dava confiança. Meus pés virados completavam tão bem o meu pensamento, minha ideia de mim mesmo, que me senti mais forte. Falei como iríamos salvar Dona Cosminda. Pulamos o muro. Nós três éramos fortes, o vento não nos derrubaria. Eu havia sido protegido, agora tinha o dever de proteger.

Entramos devagar pela porta dos fundos. Fui em frente e vi Dona Cosminda chorando sob os gritos do marido. Coloquei apenas os meus pés à vista, para que assim parecesse alguém de costas. Sabia que quando ele os visse, viria. E ele veio pronto para me acertar pelas costas. Mas eu estava de frente. Joguei-o no chão. Nós três avançamos. Juca parecia crescer junto com a própria sombra, assustando o homem.

Dona Cosminda nos olhava em lágrimas, dizendo para sairmos dali. Mas Larissa dizia que não, avançando sobre o pai, como uma ave grande atacando-o. Ele ficou todo arranhado e correu para fora.

Lá fora, Dona Cosminda e Larissa, da calçada, começaram a xingá-lo. A polícia já chegava a postos para avançar sobre as duas. A vizinhança gritou com raiva delas, diante do homem ferido, cambaleando e caindo. Os vizinhos xingaram muito Dona Cosminda e Larissa. Mas minha amiga, com olhos reluzentes, enfrentou a todos, derramando a sua fúria com a toda a verdade, que parecia sons de pássaros, deixando todos em choque. Sem poder fazer outra coisa, a polícia levou o seu preso dali e, dessa vez, fui eu quem corri a abraçar Larissa, que estava paralisada no meio da rua.

Dias depois, soubemos que o seu pai havia se enforcado na prisão. Nesse dia, estávamos na sala de Dona Cosminda, que costurava uma roupa preta para si. Parecia triste, mas eu sentia que algo nela estava ficando mais leve a partir daquele dia.

Começamos a brincar de assobiar, sabendo do poder que teriam as nossas melodias naquele momento. Tentamos ensinar a Juca, que não conseguia. Ríamos. Flagrei no sorriso de Larissa que ela parecia mais forte e iluminada.

Quando Dona Cosminda pareceu mais calma, fomos pelo corredor para o quintal e vimos os pássaros engaiolados do pai de Larissa com cantos tristes. Cada um de nós, como se aquilo completasse a salvação, levou uma gaiola para o quintal e lá abrimos, deixando-os voar livremente. Era como se estivéssemos libertando muito mais.

O DESPERTAR DO CURUPIRAOnde histórias criam vida. Descubra agora