Aquela rotina durou um bom tempo e só se rompeu quando, sem que esperássemos, um circo chegou à nossa vila. Todo mundo correu para vê-lo passar pela rua principal, com seus carros coloridos, cheios de enfeitados reluzentes e alguns animais selvagens, que davam dó de ver presos em jaulas. O cheio e as cores do circo seguiam aos solavancos e um homem com cara pintada anunciava com a garanta vibrante a sua chegada.
Aquela voz era tão diferente naquele aparelho de microfone. Parecia que vinha de tão longe. Teriam eles cruzado com o vento que carregou a minha vó? Saberiam daquelas coisas de longe que a vovó contava? Pela primeira vez, pensei seriamente no longe e pensar o tamanho do mundo me apavorou um pouco.
A vila se agitou e começou a se arrumar para a noite. Eu só tinha visto isso acontecer nas noites de São João, que eram sempre um momento ímpar de felicidade. Eu ajudava a vovó a fazer a fogueira na porta de casa e me juntava à vizinhança para colocar as bandeirolas na nossa rua. Aquele agito fazia bem, aquela fumaça ganhava vida junto com o vapor que saía das nossas bocas com o frio e as músicas do Sertão.
Mas o circo era diferente. Aquela festa era trazida de longe. Como será o longe? Como podemos confiar no longe? Será que todos lá longe eram coloridos como aquele homem?
Chamei Larissa e Juca para irmos juntos comigo ver aquilo de perto. Eles se animaram sem adivinhar minhas intenções. Vesti a calça folgada e a bota grande, dizendo que era para me proteger das muriçocas. Realmente, precisava de proteção, pois as tendas do circo estavam instaladas após a estrada da mata, em uma área particular entre a fazenda grande e a vila. Era um caminho conhecido, por onde eu sempre levava verdura e leite para vender para uns moradores ali perto, que não podiam comprar do fazendeiro.
Aqueles caminhos de terra cercados de verde me faziam bem. Um dia, saí escondido de todos e fui sozinho para tirar minhas botas e a calça larga e poder pisar sem pudor com meus pés virados. Foi uma sensação tamanha de liberdade, que comecei a correr de um lado para o outro, até ter a impressão de estar sendo observado e me vestir rapidamente. Não havia ninguém, além de um vulto, que bem poderia ser de bicho. Mas não arrisquei mais assim tanto.
Pelo caminho, com os meus amigos ao lado, eu ia olhando para os lados, ajeitando a calça e olhando para a bota. Assim, nem me dei conta quando já estávamos entre as tendas e as jaulas. Fiquei boquiaberto com a diversidade de gente. Dois homens muito parecidos um com o outro jogavam varetas para cima e aparavam para jogar de novo. Mais atrás, em frente a uma tenda, uma mulher cuspia chamas de fogo, que logo recuavam para a sua boca. Na tenda vizinha, alguém tentava se equilibrar sobre uma corda. Ficamos sem saber para onde olhar, admirados. Até que vi, fumando um cachimbo, um velho calçando sapato. O seu pé era torcido, parecido com o meu.
Foi uma emoção imensa. Não me contive e devo ter feito algum barulho que chamou atenção de algumas pessoas ali. Juca disse para corrermos. Larissa disse que não nos fariam mal. E eu, comovido, fui até o senhor do pé torto.
Quantas perguntas não me vieram à cabeça naquele momento? Teria um vento passado por ele e o deixado assim? Como ele lidava com aquilo? Poderia me dizer, senhor? Mas antes de iniciar qualquer pergunta daquelas, fui espantado com um grito estrondoso dele:
- Vão embora daqui, crianças! Tirem eles daqui!
Fiquei em choque com o grito daquele homem, que achei ser a minha salvação. Se eu tivesse mostrado meus pés, ele teria me aceitado? Fiquei paralisado sem querer aceitar que alguém com os pés virados pudesse fazer aquilo.
Alguns homens de cara pintada se aproximaram e nos expulsaram. O homem que havia falado no microfone foi o único a ter a paciência de nos avisar que não era permitido entrar nos ensaios, que eles nos esperavam no espetáculo, piscando o olho.
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O DESPERTAR DO CURUPIRA
FantasyUm garoto perde a sua avó de um modo inesperado, virando a sua vida literalmente do avesso. Agora ele terá que encarar o mundo e os seus perigos, mas, ao contrário do que esperava, não estará sozinho nessa jornada de inusitadas descobertas, envolven...