6 - Revelação

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No dia seguinte, fomos apresentados à trupe. Os meus pés foram a garantia de estadia. O que era uma alegria dobrada para mim. Alegria que triplicou por Larissa ter sido aceita comigo. Mas nem tudo foi tranquilo. O velho de pé torto logo nos encontrou e continuou a se mostrar ranzinza. Será que ele tinha rancor do vento ter virado o seu pé? Fiz essa pergunta a Larissa, que eu não soube se acreditou mesmo no que contei sobre o vento, mas me garantiu que nem todo mundo que tem pé torto é alguém bom. Eu achei aquilo tão lógico e me perguntei como não tinha pensado nisso. Ela disse que minha avó era uma pessoa muito boa. E eu não entendi o que aquela frase tinha a ver com o resto da nossa conversa.

Fora o velho e o fato de o tempo todo eu ter ficado fissurado no desejo teimoso de puxar conversa com ele, fomos bem tratados. As crianças nos chamavam para brincar. Os adultos nos diziam segredos das apresentações. Eu cheguei a ensaiar para a entrada dos meninos de pés virados, em fila indiana, sob os risos entusiastas de Larissa. Comemos bem. Mas não era o que costumávamos comer na vila. Não tinha fruta-pão, macaxeira, batata, farinha, jabá. Nem um doce de leite! O que eles tinham era comida dentro de latas. Nossa estranheza suscitou perguntas sobre o nosso vilarejo. Eu não pensei que meu lugar fosse tão misterioso para alguém. Falamos bastante e eu estava feliz por não ter que esconder os pés.

Nessa distração, como no bosque da vila, eu tive novamente a impressão daquele vulto a me observar. Disfarcei e quase o flagrei. Aquele vulto me fez lembrar do homem que visitava a minha avó para contar histórias. Em nossa casa, ele era também um vulto, visto por mim sempre de relance.

Mas como parei para encará-lo bem, sem mais receios, sua figura se firmou. Era mesmo um homem que me olhava. Larissa percebendo, aproximou-se e o chamou pelo nome de José. Como ela o conhecia? Ela explicou que esse homem era conhecido dos seus pais e que era muito amigo da minha avó. Ou a memória de Larissa era muito melhor do que a minha ou ela nunca teve aquele medo de olhar.

O homem conversava com o velho ranzinza, quando nos aproximamos. Ele falou conosco como se nos tivesse visto ontem e anteontem e sempre. Olhando bem o seu rosto, lembrei com clareza. Ele quis saber por que estávamos ali sozinhos. Expliquei que a vovó tinha sumido e eu precisava de um lugar para trabalhar que me aceitasse com meus pés. Ele riu como se já esperasse aquela resposta e tocou nas botas distraidamente. Disse que pegou carona com o circo também, mas que logo chegaria ao seu destino, que era a sede do município. Teve que me explicar o que significava município e dizer que a vila pertencia àquela sede. Demorei a entender e me espantei em como a vila era maior do que eu imaginava. Entendi que ainda estava no mesmo território. Ele ficou sombrio nesse momento, dizendo, mais para si mesmo, que o prefeito dali estava trazendo algo ruim para o lugar, mas não continuou. Parecia perturbado com o pensamento. E mesmo com a curiosidade de Larissa, ele foi já se afastando, atendendo aos resmungos do velho ranzinza, que fumava cachimbo sentado em um tamborete.

Após dar alguns passos, José voltou e me entregou rapidamente uma bolsa velha feita de couro, dizendo que era para ele ter entregue à vovó antes de ela ter ido embora. Como ele sabia que ela iria embora? Eu engoli muitas perguntas naquela hora, com aquele medo do velho ranzinza, do qual depois me arrependi. Pegamos a bolsa e, como a conversa com o velho do pé torto demorasse e outras pessoas do circo começassem a se reunir ali por perto, perdemos o homem de vista. Não o vimos mais.

Na noite daquele mesmo dia, houve um ensaio mais organizado das apresentações do circo. O lugar onde estávamos parados agora já era a sede do município, José já devia ter terminado sua carona, mas eu não via o movimento esperado de que tanto se falava sobre cidades. Larissa me explicou que ainda não havíamos entrado de fato.

Cansados, após os ensaios, fomos dormir em uma tenda com as crianças. Coloquei a bolsa ao meu lado, mantendo-a fechada, como eu sempre fazia quando tinha que entregar algo a vovó. Ela não gostava que mexessem em suas coisas. Cochilei e sonhei com muitos vultos passando por mim. Eu estava sozinho e os vultos passavam sussurrando o meu nome. Acordei quando senti uma mão gelada no meu ombro. Abri os olhos e não vi nada. Só depois de piscar um pouco, percebi que a bolsa estava afastada, no meio da tenda.

Pensei que pudesse ser brincadeira de alguma criança, mas todas dormiam. Quando fui pegar a bolsa, ela se afastou sozinha. Aquilo só podia ser algum truque. Olhei para os lados e Larissa estava acordando. Bocejava e me perguntava o que eu estava fazendo. Quando ela percebeu que eu perseguia a bolsa, que se arrastava no chão, agilmente juntou-se a mim naquela perseguição, que nos levou para fora da tenda, nos colocando na noite escura.

Lá fora, estava ventando e as folhas das árvores barulhavam. O medo me deu um impulso de pular e pisar na bolsa para resolver aquilo. No pulo, girei no ar como um pião e pisei certeiro na bolsa. Quando a toquei, várias vozes vieram como disparos de ar em minha direção, fazendo-me cair. Sem saber se Larissa também ouvira, senti suas mãos me puxaram e ela gritar bem perto do meu ouvido para corrermos mais e cada vez mais rápido.

Passando por arbustos, árvores, galhos quebrados, eu simplesmente esqueci das dificuldades de correr com os pés virados. Pareceu a mim muito fácil pisar com os pés naquela posição. Eu conseguiu evitar pontas de pedras e terras afundadas. Larissa, sempre mais rápida do que eu, às vezes tropeçava, mas dava saltos longos com inteligência.

Só quando as vozes pareciam estar muito longe, paramos ofegantes. Estava escuro e estávamos perdidos. Começamos a andar de um lado para o outro, tentando avistar as tendas, mas sem saber se era mesmo uma boa ideia encontrá-las. Afinal, os ladrões deveriam ser de lá. Paramos e nos recostamos em uma árvore. Ficando acordados até o amanhecer.

Pela manhã, de onde estávamos, pudemos enxergar a cidade. Víamos algumas casas e um início de movimento de pessoas e carros. Fomos até o acostamento da avenida e seguimos até a calçada de uma rua. Larissa disse para eu esconder melhor a bolsa.

Adentrando mais na cidade, escutamos passos apressados soando atrás de nós. Olhamos rapidamente e vimos dois homens e uma mulher olhando diretamente na nossa direção, sem parar de andar. Começamos a correr e eles vieram atrás. Dobramos esquinas e entramos mais e mais na cidade, onde entendi que, embora houvesse mais gente, era tão fácil de se perder quanto na mata.

Durante a corrida e a insistência dos perseguidores, foi Larissa quem teve a ideia. Ela lembrou que eu estava descalço, que havia deixado a bota na tenda e, percebendo que as ruas daquele bairro eram de barro, combinou que ela iria entrar em uma daquelas casas abertas e que eu seguisse atraindo os perseguidores, pois a bolsa estava comigo.

Seguindo as instruções de Larissa, corri cortando ruas aleatórias em zigue-zague, deixando minhas pegadas ao contrário, antes de chegar no chão de cimento, fazendo os meus caçadores se perderem.


O DESPERTAR DO CURUPIRAOnde histórias criam vida. Descubra agora