9 - Copos de alumínio e amassados e filtro de barro

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Seguimos caminho, guiados pela confiança dos passos de Larissa. Durante certo trecho, comecei a ver, de relance, movimentos na mata. Fiquei atento. Quando senti que eles estavam ficando mais perto, parei. Larissa, percebendo, com os olhos me indagou e com os olhos eu tentei lhe avisar. Mas foi tarde. Algum animal, do que só podia perceber uma silhueta felina, avançou e só pudemos correr. A corrida foi intensa, meus pés para trás eram sempre uma força reversa que eu precisava carregar, mas naquela corrida percebi que podia usar aquela resistência como impulso para ganhar aceleração. Larissa, sempre mais veloz, dava longos saltos.

Quando estávamos quase tão ofegantes, a ponto de parar, nos deparamos com uma cabana no meio do mato e um velhinho sentado em um tamborete na entrada, picando fumo. Estávamos desesperados e ele se mantinha tranquilo. Olhando para trás, o bicho havia sumido. Respiramos ofegantes e ele deu um sorriso quase sem dentes, que misteriosamente nos tranquilizou.

De dentro da cabana, saiu uma velhinha. Ambos sorriam para nós com simpatia. Disseram que era raro alguém passar por ali e nos ofereceram descanso. Perguntamos sobre os animais selvagens e eles nos contaram que há mesmo uma onça malvada pelas redondezas, que havia sumido há um tempo, mas agora estava de volta. Essa onça, eles disseram, era fácil de identificar, pois tem uma das patas torta. Sabendo disso, era mais fácil evitá-la.

Antes que eu perguntasse de que modo, eles insistiram para que entrássemos e bebêssemos água. Estávamos muito perplexos. Mas, como adivinhando a minha pergunta, a velhinha disse que aquele pedaço de terra era o melhor lugar para descansar. Ali a onça não iria. "É um refúgio, um presente de uma velha amiga", piscou para mim como se eu tivesse entendido.

A cabana era muito simples e o ar transpassava tranquilidade. Lá de dentro se ouvia os sons diversos de passarinhos da mata, misturados ao barulho do vento balançando folhas. Eu disse que o lugar parecia mágico. Larissa achou bonito. O velhinho disse que era muito bom passar o fim das suas vidas ali. Eles não teriam muito tempo, mas nós éramos jovens e precisávamos agir lá fora, enfrentar mesmo a fera, encarar o mal que tudo ameaça. Mas que agora nós descansássemos e fôssemos à cozinha beber uma água, precisávamos de força. Dizendo isso, eles se entreolham.

Enquanto eu tentava entender o que aquelas vozes cavernosas diziam, cada um dos velhinhos estendeu um copo para cada um de nós. Eram copos de alumínio muito amassados. Eles seguravam com algum tremor, que entendi ser da velhice. Larissa e eu pegamos, fomos à cozinha e nos deparamos com um de filtro de barro. A sede aumentava. Larissa bebeu primeiro. Vi que enquanto dava goladas na água, seus olhos reviravam de um modo estranho. Estava mesmo com muita sede. Quando ela acabou e olhou para mim, por um momento vi seus olhos de um branco total. Mas conclui que era miragem por causa do cansaço.

Fui beber e meu coração disparou. Enchi o copo e ouvi lá fora o vento. Quando dei os primeiros goles, o vento aumentou. Fechei os olhos e quando abri eu já não estava lá e Larissa havia sumido. Eu estava no quintal da vovó. Ela estava lá e eu brincava com as folhas do pé de manga espalhadas pelo chão. Eu fingia que as folhas eram animais e o quintal, a floresta. Passava horas ali, fantasiando, nas sombras das árvores, recebendo uma brisa, mergulhado cada vez mais profundamente na minha imaginação. De repente, vovó me chamou para dentro, dizendo que o vento estava mudando. Eu corri e, de relance, vi um menino negro, de gorro vermelho, soprando vaporadas generosas de ar, com um cachimbo fumacento na boca. Ele é bem pequeno e está em cima do muro, saltitando. Minha vó me puxa e entramos em casa. Quando consigo voltar para olhar o quintal, ele não está mais lá. Escuto apenas uma risada distante, que concluo ser de algum vizinho.

Termino de beber a água e Larissa está me encarando, perguntando se eu estava bem, que eu tinha feito caretas, que a água era tão gostosa de beber. Nós rimos, um sorriso espontâneo, quase como se estivéssemos embriagados. Os velhinhos vieram até a cozinha e disseram que nós éramos mesmo fortes, que nem eles mesmos conseguiam beber daquele filtro com aqueles copos sem se desesperar.

A velha disse que, pelo jeito, já estávamos prontos para ouvir tudo e apontou para a bolsa. Falou com tanta naturalidade, que a nossa embriaguez aceitou, sobre uma bruxa muito antiga, que havia costurado uma bolsa como aquela. Que fizera uma costura tão forte, que a bolsa era capaz de guardar tudo, até mesmo o tempo. Era uma bolsa muito parecida com aquela. Ela parou um momento, refletiu e pediu para que eu abrisse. Aquele clima de confiança era bom e eu prontamente assenti.

Enquanto eu abria, ela dizia que o tempo, mesmo guardado por uma bolsa tão poderosa como aquela, não deixaria nunca de passar. De dentro da bolsa, saiu um brusco vento rodopiando, como um pequeno furacão dentro da cabana. Mas, apesar do susto, aquele vento não nos empurrava, apenas passava por nós atrapalhadamente até conseguir se concentrar no centro da cozinha, começando a formar uma imagem. Era a minha avó.

A vovó parecia uma miragem, mas falava. Eu mal enxergava com a visão embaçada de emoção. "A bolsinha da minha mãezinha. Eu sabia que iria revê-la. É como olhar para ela". E, por baixo dos óculos, vovó também se emocionava. "Meus amigos, que bom revê-los! Meu netinho, como está crescendo..." E olhou para os meus pés, dando um suspiro.".

Larissa riu e comemorou de alegria, cumprimentando a vovó. Eu esfreguei os olhos e, como sentisse o vento na pele, comecei logo a perguntar muitas e muitas coisas, atropeladamente. Aonde ela tinha ido, o que havia acontecido, se ela estava bem. Mas ela me interrompeu, por ter pouco tempo, e me falou do vento. Que ela sempre soube que ele viria, que o vento era um sopro anunciando um novo ciclo que eu precisaria enfrentar sem ela. Era uma brincadeira das mais sérias daquele duende pequeno do muro, mas ele tinha razão. O que eu precisava agora era de coragem. Eu precisava, ela me dizia, colocar meus pés à mostra, encarar o mundo e enfrentar o mal, que fere não só a mim, mas a todos.

Ela olhou para Larissa e disse que voar era possível, sim. Que estava agora mais tranquila por saber que seu neto estava em boas mãos. Ela riu, com uma risada saborosa, que eu sempre escutava, quando ela conversava na calçada com Dona Cosminda, e começou a desaparecer. "Cuidem da minha amiga Cosminda." Olha para o casal de velhinhos e diz: "A velhice não impede o sonho!". Para mim, ela faz um gesto de abraço, abraçando a si mesma. "Muito cuidado com a Onça da Mão Torta, ela não está sozinha. Nunca está". E desapareceu naquele vento, que se espalhou pela cabana com cada vez mais força, até forçar a janela a abrir e ganhar o rumo da selva.

Atordoado, não soube como reagir àquela cena intensa de surpresa e êxtase, até que Larissa veio me abraçar, organizando tudo dentro de mim.

Quando procuramos os velhinhos, eles já não estavam mais em lugar nenhum da cabana. Lá fora, o vento continuava a soprar e, pela janela, enfim, pudemos ver que ambos voavam, deslizando pelo ar, indo para longe, cada vez menores no horizonte.


O DESPERTAR DO CURUPIRAOnde histórias criam vida. Descubra agora