Dias de morango - Parte um

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Julho

Os dias cinzas começaram a carregar purpurina em suas nuvens. Eu posso jurar a você que haviam pássaros dançando nas correntes pesadas de ar que flutuavam por cima da nossa pequena cidade. Não consegui continuar Orlando, por hora. Mas voltei a ler incessantemente a Bíblia. Digo, por conta própria. Não apenas nos momentos que eu teria que ler de qualquer forma. As férias chegaram e com ela minhas pedaladas pelas belas paisagens que rodeavam a vila. Mas esse ano eu não estava sozinha, muito menos com as minhas amigas de infância, estava com Yolanda e a vida que a chama em seu cabelo pusera no meu inverno. 

Nós íamos de bicicleta até algum lugar remoto, nos sentavamos e líamos a Bíblia. Se alguém me dissesse que eu estaria fazendo isso no dia em que ela me beijou, eu acharia patético. Mas não havia outra coisa que ela gostasse mais de fazer. Você pode imaginar o quanto isso me surpreendeu. Eu imaginava o quanto de coisas sobre ela ainda havia por descobrir, mas me sentia impedida de intimidá-la lhe perguntando detalhes das suas obstinações. Então esperava descobrir tudo pelo pouco que ela deixava escapar. Não acho que ela estivesse muito preocupada em esconder nada. Apenas vivia um dia de cada vez; o seu passado, onde quer que ele estivesse, não parecia fazer parte do seu dia a dia. Eu supunha que ela era diferente de todos nós, que ela tinha os seus pensamentos ali, nas paisagens, nas pessoas que nos cercavam, nos textos que líamos, como se o dia anterior fosse uma névoa. Apenas porque ela não falava nada. Achava incrível. E pensava que comigo nunca seria assim. Aonde quer que eu fosse tudo o que vivi, todos os ensinamentos, me perturbariam como penintências, e me impediriam de viver intensamente. Como acontecia reconrrentemente. Eu a olhava e queimava, e queimava tanto! Que comecei a evitar olhá-la diretamente na maior parte do tempo. E não era o "porquê queimar" que me irritava, e se o "porquê não me permitir queimar". 

Era uma tarde de quarta-feira no mês de julho, e ela não estava ocupada com os desenhos, então, depois de cumprimentar os meus pais pediu permissão para que fôssemos até os roseirais com nossas bicicletas. A essa altura você pode imaginar que ela já fazia parte da família praticamente. Meu pai se convenceu de que a julgara mal, e agora já até pensava em lhe oferecer algum cargo na igreja. As minhas amigas sempre nos viam passar e pareciam (normalmente) não entender nada. Sibele até tentou se alinhar aos fatos, me procurando e jogando conversa sobre Yolanda, mas como eu não lhe dissera nada, logo desistiu. Não era como se Yolanda me preferisse, eu não achava isso, pois as meninas podiam ir a sua casa e também saiam com ela. Mas, bem, era verdade que quando saia comigo, Yolanda não chamava mais ninguém. E eu, por algum motivo, também não. 

Nós pedalamos ruas e ruas até chegar ao Lar dos eternos, atravessamos o lugar e subimos um atalho de terra, rindo e comentando sobre o temporal no dia anterior. E como era estranho que o mundo parecesse acabar em um dia e queimar no outro. Yolanda tinha ideias estranhas, como por exemplo, o que aconteceria quando não houvesse mais lugar para um raio cair, já que um raio nunca cai no mesmo lugar. Eu ria e tentava não olhar para a pequena ruga que se formava entre suas sobrancelhas quando ela dizia algo que a perturbava.

O roseiral era um lugar lindo! Mas naquela época não havia nada de tão belo a olhar... Já que a chuva destruia absolutamente tudo. Nós fomos com certa dificuldade nos sentar no que chamavamos de "oca". Na verdade, era uma pequena gruta que ficava em um ângulo que dava pra contemplar toda a pequena vila lá embaixo, principalmente agora que não havia um roseiral na frente para impedir a visão. A vila parecia um lugar deserto, ou uma foto antiga que perdia a cor. Eu ainda estava observando quando ouvi Yolanda ler:

"E sucedeu que, acabando ele de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou, como à sua própria alma. E Saul naquele dia o tomou, e não lhe permitiu que voltasse para casa de seu pai. E Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma." (1 Samuel 18)

Não coma esses morangosOnde histórias criam vida. Descubra agora