Como Yolanda me conheceu

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Na praça eu fiquei tão absorvida pelos rostinhos que pude quase ver nos morangos, que não me aproximei do grupo cercando Yolanda. Eu fiquei olhando-a apenas de longe. Tentando relacionar o ruivo dos seus cabelos com os morangos. Soava realmente engraçado que ela gastasse tempo pintando morangos. Eu queria mesmo saber o porquê. Mas me abstive com sua visão.

Eu tive que ouvir Sibele falar sobre a desconhecida Yolanda e sua gentileza todo o caminho para casa. Nós voltamos em nossas bicicletas, por caminhos que cortam plantações de abacaxi, e podemos ver lindos canaviais no horizonte. Era tardinha, e o céu estendia-se em um quase ruivo, sem querer pensei no cabelo de Yolanda.

Eu fiquei calada até a hora do jantar. Quando depois da oração, minha mãe começou a falar que havia uma mulher morando na enorme casa branca na última rua. E que ela estava cuidando da imensa terra no quintal, para plantar morangos. Meu pai caçoou disso. Em terras quentes plantando morango... Pobre moça do exterior.

Então eu contei sobre a exposição de morangos e a gentileza narrada em detalhes pela Sibele. Meu pai, que é pastor de uma igreja batista bastante tradicional, falou sobre como os estrangeiros acham que entendem tudo sobre todas as coisas. "Uma moça que nunca deve ter trabalhado com a terra metida nesse lugar." Minha mãe questionou o destino da creche quando a senhora dona do lar dos eternos viesse a falecer, nas mãos de alguém tão despreparada.

Eu nunca vi minha mãe discordar do meu pai em nada. Era um bom homem. Meu avó também era pastor, então você pode supor o quanto nossa familia vem de uma tradição metódica. Onde os títulos passam de pai para filho. O meu irmão, Pedro, já estava sendo muito bem preparado. E no próximo ano iria para o seminário na cidade. Ele estava ansioso para morar na cidade, não no seminário.

Logo pedi licença e fui ler no meu quarto. Graças a Sibele eu consegui pegar na biblioteca "Os sofrimentos do jovem Werther" do Goethe. Todos os meus livros, e até CD's, passavam pela supervisão dos meus pais. Minha mãe lê e ouve tudo antes de me autorizar. E como eles eram os lideres da única igreja evangélica na vila, as coisas logo lhes chegavam aos ouvidos. Eu tinha cuidado em tudo pois sempre me foi dito que eu devia prezar pela honra de toda familia. Eu e meu irmão somos os únicos filhos. Além desse argumento, ouvimos desde sempre falar como se portam verdadeiros cristãos. Eu não tinha muito sobre o que questionar na minha vida. Mas sem querer li em um dia só um livro que era uma peça de teatro, chamada "A serpente", de um autor chamado "Nelson Rodrigues". A Sibele queria ser atriz, por isso vivia lendo sobre teatro no computador da nossa escola. Vimos o titulo e achamos que fosse uma linda peça teatral sobre como uma serpente enganou o homem. Mas nós é quem fomos muito bem enganadas.

Apesar de saber que o conteúdo do texto nunca deveria ter chegado as nossas mãos... Lemos até o final. Não pudemos parar um segundo. A linguagem, e os fatos que o texto descrevia fazia as nossas línguas travarem na nossa boca. Não falamos nada sobre ele. Mas desde então, Sibele pega livros românticos e fictícios na biblioteca, e depois que os lê, me dá. Assim ninguém fica sabendo que eu peguei livros desse tipo na biblioteca e eu não preciso explicar nada.

Eu terminei o maravilhoso romance de Goethe aquela madrugada. Confesso que mal consegui dormir atordoada com o final trágico do texto. Imaginando que isso não poderia acontecer em hipótese nenhuma se o amor fosse real. Afinal de contas, o amor é o maior dos dons. Logo, aquilo que leva o homem a loucura não poderia ser amor. E foi com esses pensamentos que eu adormeci aquela noite.

O dia seguinte era sábado. E como minha mãe foi à feira com o meu pai na cidade, eu e meu irmão nos demos o luxo de acordar tarde. Aquele dia foi se passando maçante como sempre. Meu irmão sempre sai com os amigos para tocar violão e ensaiar músicas para igreja. Como eu não canto, e não sei nenhum instrumento, muito menos tenho alguma aptidão para qualquer coisa na igreja... Sempre fiquei meus finais de semana a conversar com Sibele ou qualquer outra amiga, ou a ver televisão, e estudar. Bem, mas agora eu havia descoberto os romances.

Não coma esses morangosOnde histórias criam vida. Descubra agora