Como realmente conheci Yolanda

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O grande acontecimento daquele fim de semana não foi nossa visita a Yolanda. Mas a visita de Yolanda a igreja na manhã seguinte. Eu estava sonolenta entre as primeiras cadeiras quando percebi que o meu pai e os outros homens no altar olhavam fixamente para porta e segui seu olhar. Lá estava Yolanda falando com Sibele na entrada da igreja. As duas perceberam a atenção voltada para elas e se sentaram no último banco, muito seriamente.

Ela estava com um lindo vestido florido e o mesmo tennis de ontem. Sua aparição gerou-me tantas perguntas que mal posso lhes dizer.

Mas continuei centrando meu espírito nas canções, e em seguida, no sermão do meu pai.

A vida de Gideão sempre me gerou controvérsias internas. O livro de juízes inteiro aliás, com suas mulheres maravilhosas e nenhuma intenção óbvia de cumprir uma missão natural de procriação.

Gideão, assim como os outros homens do mesmo livro, mesmo que tivessem a intenção de cumprir o natural preceito masculino, muitos deles falharam. Ao longo da minha conversa com vocês falarei muito sobre este livro pois é o que mais me encanta. Gideão foi, portanto, em minha opinião nada clériga, um grande covarde. Gostaria que ele tivesse sido um grande covarde como Jonas, que assumiu do inicio ao fim sua covardia. Mas ele foi um covarde que intencionava não sê-lo. Ele assumiu o posicionamento de ser um escolhido, mas os escolhidos as vezes fraquejam, e ele não se assumiu como um fracasso.

Era nisso que eu pensava enquanto ouvia meu pai falar sobre a valentia de Gideão e como nós deveríamos seguir o seu exemplo. Eu me sentia tão parecida com Gideão! Mas não naqueles aspectos. Em aspectos particulares que eu jamais teria coragem de admitir ao meu pai, ou a qualquer pessoa. Eu era um fracasso em ser uma escolhida.

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A vida passou devagar. Yolanda sempre ia à igreja. Mas nunca falou comigo nem sequer me olhou. Logo ela se tornou amiga das minhas amigas. Sibele continuava a me emprestar os livros, mas gradualmente nos afastamos. As meninas iam sempre a casa de Yolanda, ou iam juntas a rios, ou visitar belas paisagens. Não me era permitido ir junto, e quando eu ia sentia-me tão deslocada, que logo eu mesma comecei a me recusar a ir.

As poucas vezes que Yolanda me dirigiu a palavra foi para perguntar uma ou outra coisa sobre alguém, e sempre o fazia casualmente. Apesar dessa distância que ele impôs apenas comigo, pois com nenhuma das outras meninas isso acontecia, eu me sentia muito nervosa, mil vezes inferior a ela, como se um planeta distante e desconhecido se chocasse com a minha terra firme, a presença dela me abalava. Por isso fui-me mantendo indiferente a tudo aquilo. E me concentrando cada vez mais nos livros, e na minha própria confusão.

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Quando o mês de maio chega, chegam junto as chuvas e as cortinas de neblina. A maioria de nós tranca-se em casa, eu e os outros jovens estudamos para as provas finais e aguardamos ansiosos as férias de julho. Até ai eu já tinha lido Lucíola, e fiquei tão atortoada pela cena da poderosa e frágil menina despindo-se numa mesa repleta de cavalheiros, que decidi pesquisar mais livros que abrangesse esse universo. Acabei lendo logo depois, Onze minutos do Paulo Coelho e alguns de poesia. E depois desse decidi parar com os romances. Mas continuei com as poesias. Eu precisa estudar para as provas, e sentia que estava enlouquecendo com aquelas histórias. Mas quanto a poesia... Não consiga me desvencilhar e comecei a escrever algumas. Acredita?

A minha primeira poesia eu a joguei fora. Mas logo não podia mais parar de escrever. Um dia estava decidida a estudar geografia, mas algo estava me incomodando muito. Eu não conseguia para de me revirar na cadeira. Então decidi subir até a colina na última rua e olhar a bela paisagem.

Estava um dia muito frio, e o oceano de canaviais desaparecia na neblina. Eu adorava aquele mundo de nuvens, e precisava mesmo sentir aquela fumaça sair pela minha boca. Eu subi a rua por um atalho que ia por detrás das casas, literalmente pelos matos. Todos nós estamos acostumados a andar por lugares assim aqui.

Lá em cima sentei numa pedra macia que mais parecia um lençol no chão mesmo. Queria que você pudesse ver o que eu via... E na verdade o que eu via não era nada. O branco me cobria totalmente. Eu só consiguia enxergar mesmo um pouco do rastro da rua que descia atrás de mim. E aquela linda paisagem de canaviais parecia ter sido sugada pelas nuvens. Era assim mesmo que eu planejava olhar o alto: o nada infinito.

- Que tipo de pessoa vem aqui com esse tempo?

Eu demorei muito pra criar coragem de virar o rosto porque eu sabia de quem era a voz. Sentir minhas bochechas queimarem na mesma hora. E enquanto pensava em algo pra responder ela se sentou do meu lado, olhando pra mim sem nenhum pudor, ou sem um traço de intimidação sequer. Por que me sinto assim? Pensei.

- É assim que enxergo minha alma.

Ela falou, me fazendo sentir-me uma completa idiota por não ter falado nada. Meu constrangimento era tão óbvio. E poderia ser normal visto a pessoa tímida que havia demonstrado ser até agora, para Yolanda. Mas deveria soar realmente estranho para minhas amigas que sabiam que eu não era assim. Eu não conseguia entender porque me sentia assim. Mas ela parecia ter decidido não falar mais nada, então comecei:

- A minha também...

Ela riu. Não um sorriso... Ela fez barulho entende? Eu não entendia o que havia de engraçado, e olhei confusa para ela. Foi quanto notei que seus olhos estavam inchados de vermelho, andara chorando. Aquilo me constrangeu ainda mais. Ela não estava rindo como uma pessoa normal. Então se aproximou de mim, enroscou seu braço no meu, e descansou a cabeça no meu ombro, silêncio. Parecíamos duas boas amigas, e nunca tínhamos trocado mais de cinco frases de cumprimento. Comecei a achar que ela estava chorando silenciosamente porque o silencio de estendia mais de cinco minutos, e só havia frio e neblina ao redor. Decidi me esforçar mais:

- Você está bem?

Ela não respondeu. Decidi insistir:

- Você também não é uma pessoa muito normal por vim aqui em cima com esse tempo não é?

Ela riu de novo e levantou a cabeça. Estava olhando fixamente pra mim. Eu fui muito corajosa por olha-la também.

- Eu não sou uma pessoa normal em nenhum aspecto. E acho que você foi a única pessoa aqui que percebeu isso.

- Eu?

- Sim. Você não parece gostar muito de mim.

Fiquei muito embaraçada. Pois era ela que não parecia gostar muito de mim. Não, não era bem isso. Ela simplesmente parecia indiferente a minha existência. Mas se tinha acreditado que eu não gostava dela, então não era tão indiferente assim de mim. Quero dizer... Pelo menos ela sabia da minha existência.

- Me desculpe. Acho que você não entendeu...

- Você entendeu?

Como ela era perspicaz. Eu realmente não tinha entendido nada. Eu não sabia porque estava agindo assim, apenas que ela me deixava de um jeito diferente. E eu queria saber o porquê, mas não havia explicação.

- Talvez seja apenas uma antipatia que você não sabe explicar.

Eu estava convencida que ela estava lendo meus pensamentos a essa altura. E ri. Ela também riu. Aposto que não sabia porque estava rindo, ela não estava bem.

- Eu odeio Goethe, a propósito.

Rimos. Depois ficamos em silêncio por uns 15 minutos, vendo a neblina se dissipar e dar lugar aos canaviais que beiram o horizonte do lugar onde vivemos. Lá estava todo o mundo que eu conhecia. E aquela estranha presença estava sentada do meu lado. Tão silenciosa quanto a própria neblina.

- Você tem noção do quanto é linda?

Ela estava olhando pro horizonte e me perguntei se falava comigo ou com algum fantasma na sua imaginação. Não fiquei chocada na hora. Agora eu já estava incrivelmente tranquila. Uma voz sussurava no meu ouvido: Não há nada mais maravilhoso do que se sentir confortável compartilhando o silêncio com alguém. Enquanto eu pensava isso e a olhava, incrédula de que tivesse falado comigo/sobre mim, ela virou o rosto e me olhou. Não havia resquícios de que havia chorado.

E me beijou delicadamente.

Naquela noite escrevi meu primeiro poema que realmente valia a pena ler.

Não coma esses morangosOnde histórias criam vida. Descubra agora