Três dias ineterruptos de mim mesma

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A pior pergunta que aprendemos a lidar ao longo das nossas vidas é o famoso "Quem sou eu?". Acredite, você nunca vai saber responder isso com cem por cento de certeza. Simplesmente porque estamos sempre mudando, conforme mudam as coisas de lugar.

O fato de Yolanda beijar-me delicadamente não me assustou. Apesar dos meus lábios nunca terem sentido outro, e apesar da forma como me levantei e sai correndo. Eu estava assombrada comigo mesma. E as coisas só pioraram quando cheguei em casa suja de lama, mato e orvalho, e a primeira coisa que fiz foi escrever um poema que começava assim: Afinal, o amor não é como mostram na televisão... Ele arde nos lábios reais.

Quando terminei o poema estava tão pasma pelo uso inadequado do termo amor, que passei mais de 40 minutos vomitando no banheiro. Em uma tentativa estúpida de expulsar o sabor de Yolanda de mim. Era morango, absolutamente.

E embora eu tenha tomado banho, escovado os dentes, e bebido chá de limão com alho, continuei com aquele gosto em uma parte de mim que nada mais poderia tirar: meu subconsciente.

Fiquei assim por três dias. Literalmente na cama. Eu estava doente de tanto pensar em mim. Quem sou eu? Perguntava-me sem intervalos. E meus pais oravam com meu irmão ao redor da minha cama, com as mãos dadas, e não entendiam quando eu começa a chorar histericamente. Isso se dava especialmente nas leituras bíblicas. Pois eu só conseguia pensar em Romanos 1:26-27 (Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza;)

Eu podia enxergar a confusão nos olhos deles, mas nada podia conter meu espírito, logo percebi que achavam que era o estresse dos estudos. E essa foi a primeira vez que senti pena por meus pais serem tão ingênuos.

Comecei a analisar minha vida, eu nunca me apaixonei. Houve um ou dois casos de garotos gostarem de mim, bilhetinhos de escola, e troca de olhares envergonhados. Minha mãe sempre me educou para que um dia eu me casasse. Ela falava de um jeito que hoje percebo o quanto soava engraçado: "lapidamos uma pérola para um bom varão". Diante da minha confusão comecei a analisar tudo, até a relação dos meus pais, a vida do meu irmão, das minhas amigas. Quantos deles eram felizes?

E afinal, havia Deus, e o porquê interminável da minha existência. Uma menina sem dons. Uma pérola sendo lapidada para um varão. Havia o vestibular logo mais, meus pais sentiriam orgulho se eu decidisse não ser uma pérola? E se eu quisesse viver sozinha a rodear o mundo. O mundo não era opção na minha casa.

Você pode ver o tumulto que um beijinho de nada causou. E talvez pense que foi tudo rápido demais. Mas foi exatamente assim: rápido demais.

Yolanda era a serpente em torno do meu jardim. E embora eu estivesse o tempo todo pensando na consequência do conhecimento que o fruto proibido de mil faces me traria, a serpente vinha sempre tomar posicionamento na minha mente.

Dei-me conta que Yolanda era a pessoa mais triste que eu já havia conhecido. Porque ela chorava eu não sei, mas tinha certeza que era algo além da minha compreensão. Ela vivera em três mundos, além da sua própria cabeça. E eu só agora começava a perigrinar em um desconhecido absoluto.

Eu orava a Deus de uma forma absurdamente sincera: "Olhe só Deus, olhe como o olhar dela é triste. Ela veio sozinha para uma casa vazia em um lugar esquecido por você. Mas não esqueça de reparar que os lábios dela são pequenos e macios... - Nessa parte eu chorava e dizia: - Se planeja as coisas, eu não queria estar nesses planos. Se não planeja, eu sou totalmente inocente disso. Por favor, explique-me o que está acontecendo."

Nunca falei tanto com Deus em tão pouco tempo. Ele teve muito o que ouvir. E em três dias, quando eu já conseguia ir até o quintal, sentar embaixo de uma mangueira e continuar minhas reflexões, Sibele foi fazer-me uma visita a pedido de minha mãe.

Era um domingo um pouco mais quente depois de tantos dias nebulosos. Sibele sentou ao meu lado e começou a falar e falar despreocupadamente, como sempre fazia. Falou sobre a prova que eu perdera. Sobre o culto que eu perdera, e então, sobre Yolanda. Que estava estupenda no culto pela manhã. Vestia um vestido rosa choque que a deixava completamente feminina. Mas ainda não estava bem... Isso chamou minha atenção.

- Ela tem tomado uns remédios que nós não sabemos bem para o quê. A sua avó deixou uma senhoria na casa dela para tomar conta. Ela quem nos disse isso, quando fomos lá ontem, como de costume nos sábados. Yolanda estava nos dando aulas de artes acredita? Mostrando lindas imagens e nos contando histórias sobre elas...

Sibele e sua mania de intercalar histórias. Eu tive paciência e não a interrompi. Ela continuou:

- Mas ela não nos atendeu. A senhoria nos contou que ela está "sendo medicada" e não pode receber ninguém. Mas hoje de manhã lá estava ela em seu vestido rosa. Apesar dos olhos estarem marejados... Acho que não está totalmente bem... Riu e contou que passou uns dias doentes, mas garantia que estava bem. Acho que talvez eu devesse ir até lá...

- Não acho uma boa ideia. -

Falei. Interrompendo minha narradora, que pareceu surpresa que eu estive ouvindo alguma coisa. Ela balbucionou algo e então voltou a falar sobre as imagens maravilhosas que Yolanda exibia nas aulas de artes.

-

Eu fui à escola na segunda de manhã para fazer a prova que tinha faltado. Apesar de sair de casa, falar com minhas amigas, algo estava mudado em mim. Fui até a biblioteca e pedi "Brida" do Paulo Coelho, no meu nome. A moça que cuida da biblioteca comentou alguma coisa sobre eu nunca pegar esse tipo de livro. Fiquei calada e distante. Porque realmente não conseguia encontrar um sentido na frase "esse tipo de livro".

Eu pedalei até em casa sem pressa, e quando cheguei encontrei uma família ansiosa por almoçar, mas me esperando para a oração. E disse que eles não precisavam me esperar. O que fez o meu pai me olhar de relance. Como sempre, eu não Fechei os olhos. Isso pode não significar nada pra você. Mas não acredita com que êxtase eu cumpria esse ritual de não fechar os olhos.

Tranquei-me no quarto depois e pus-me a ler Brida. Terminei tudo as 18:00 horas. O livro inteiro. E assim como uma revoada de anjos saudaram Brida enquanto ela tinha um orgasmo no penhasco, um revoada de anjos me arrastaram até minha bicicleta e eu pedalei até a casa branca da última rua.

Não coma esses morangosOnde histórias criam vida. Descubra agora