Ela mordeu devagar minha boca e sorrimos. Entre risinhos e carícias ainda sobrava um espaço para que eu pudesse pensar um pouco sobre Yolanda, que deixava de ser um mistério, e passava a ser muito mais parecida comigo. Apenas com a diferença que eu ainda me sentia um pouco mais forte.
Ela realmente era obstinada com as questões bíblicas, como uma ofensa inoperante diante de Deus, e eu... Eu que deveria mesmo me importar mais, visto o contexto no qual estava insirida, não me importava nem um pouco. Ela era a minha religião agora. Eu romperia os portões do inferno por ela. Sabia quando olhava em seus olhos. E não posso mentir, amenizando minhas palavras para parecer menos intolerável a quem me ler.
Estava condenada e não tinha medo. Mas eu via o medo nos olhos de Yolanda. E naquele dia decisivo vi também o pânico total de não ter o controle, e de querer tê-lo.
Acontece que enquanto nos mordiscavamos e brincavamos com os lábios uma da outra não ouvimos os passos na escada. E eu só percebi que Paulo estava ali quando vi Yolanda virar o rosto em direção a porta da biblioteca, e o seu sorriso desaparecer. Então eu soube. E lentamente, o mais lentamente possível, virei o meu também. O meu irmão estava de boca aberta, pasmo, deu as costas e foi embora correndo.
Minha primeira intenção foi levantar e correr atrás dele. Mas Yolanda segurou firme meu pulso e fez menção pra que eu esperasse. Quando ouvimos a porta bater, ela se levantou e pôs as duas mãos na cabeça. Começou a andar por entre os livros, primeiro muito devagar, depois acelerou, parou, e olhou pra mim. Seus olhos eram aqueles do dia nebuloso no alto da rua. Só quando eles caíram sob os meus eu soube que estava chorando vagarosamente.
- Precisa vim comigo. O seu pai não vai entender. Precisamos ir embora.Não sou uma fugitiva. Pensei.
Mas todos os meus pensamentos se embaralharam. Do que me escondo? Do que me escondo?! Gritava-me. Eu aceitei o que sou. E eu não sou nada além de mim mesma. As vezes é um fardo. Mas pra mim era apenas... O que eu era.
Yolanda se agaichou na minha frente e me pegou nos ombros. Me olhou tão fundo nos olhos e disse pra eu falar alguma coisa. Levantei, caminhei até a porta, e disse:
- Eu vou conversar com o Paulo.
Enquanto eu descia as escadas Yolanda veio atrás de mim falando sobre como as pessoas não eram eu. E sobre como elas reagiriam. Que não suportariam. Que seria uma ofensa. Que era uma ofensa!
Na medida que nos aproximavamos do portão no jardim eu virei pra ela e lhe olhei suplicante. Meu amor não será uma ofensa. E se for, me desculpem... Eu não disse nada, ela entendeu. E ficou apenas me olhando descer a rua, com aqueles olhos que anunciavam novas crises. A tempestade Yolanda.
-
Era uma tarde de quinta-feira quando abri devagar a porta de casa, tentando conter a apreensão. Mas os meus pais estavam tranquilos na sala, conversando naturalmente, e olharam-me passar até o quarto apenas de relance. Paulo ainda não havia chegado. Então encima da minha cama estava o meu caderno onde eu escrevia os textos e poemas sobre Yolanda. Foi assim que ele descobriu tudo, e o beijo só lhe confirmou o que já sabia.
Eu sentei na cama tentando entender tudo, ajustar os pormenores dentro de mim. Em poucos dias nós iríamos para São Paulo com Yolanda, para minha prova de vestibular que Paulo ainda não sabia. Eu teria que saber contornar as coisas em sua mente. E agora a serpente no jardim seria eu.
Porém, as horas se estenderam até muito tarde quando ouvi Paulo entrar em casa, falar rapidamente com nossos pais e vim até meu quarto. Fiquei escutando seus passos e só então senti-me temorosa.
Quando eu tinha 10 anos roubei um coco de um coqueiro baixo do nosso vizinho. Eu não sabia que era proibido. Simplesmente peguei o coco e levei até o meu quarto. Só depois escutei o murmurinho dos vizinhos e dos nossos pais no quintal de casa. Fiquei com medo. Com tanto medo! Mas antes que eu pudesse dizer algo, Paulo assumiu a culpa por mim. Devolveu o coco, pediu desculpas, e fiquei uma semana sem ver seus amigos da rua. Aquele era o estilo do meu irmão. De certa forma ele era como um pai deveria ser pra mim.
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Não coma esses morangos
RomanceQuando Yolanda surge na vida de Linda, a filha do pastor da pequena vila onde mora, vê sua vida pacata ser totalmente perturbada pela beleza e forte ideologia da estranha amiga.