Salafrária
"Toque, toque". Bela onomatopeia pra quem tem uma sub metralhadora nas costas e uma pistola na cintura.
- Eu entro atirando? - queria não ter escutado aquela pergunta.
- Óbvio que não.
- Mas e se eles abrirem a porta atirando? - prosseguiu a assassina de aluguel.
- Aí você me deixou sem argumentos.
- Eu sempre te deixo sem argumentos - ela bateu na porta novamente - e tá proibido de discordar disso.
- Justo.
A porta marrom com olho mágico amarelado se mexeu para trás e do outro lado avistei um velhinho dobrado apoiado sobre uma bengala, óculos grossos e cabelo bem penteado. Aquele grisalho era natural, ao contrário daquela louca.
- Testemunhas de Jeová? - o senhor tinha uma voz curiosa, gentil e com um pouco de desgosto.
- Na real, não - eu parecia está vestido como uma testemunha? Talvez ele fosse quase cego. - Nós somos ami...
Dhalia me interrompeu com uma cotovelada.
- Senhor! - ela começou a falar alto. - Está esperando alguém!!? Se for, voltamos depois!!.
- Garota, eu não sou surdo - ele fitou Dhalia diretamente no piercing, - sou apenas meio cego, e sim, estou esperando uns amigos da minha neta.
- Sua neta não séria?...
- Ah - uma senhora apareceu atrás do senhorzinho, possivelmente uns 45 anos. - Eles chegaram, vamos, entrem. Um pouco atrasados, mas vindo da Shayara é normal.
- Oooo - o velho ficou impressionado. - Desculpe o engano, entrem, queridos.
Entramos no apartamento roxo familar, cheirava a perfume de gente idosa e lasanha. Talvez o lugar mais feliz em que estive nos últimos dias.
- A mamãe tá fazendo uma lasanha pra vocês, daqui a pouco fica pronto - a mulher era muito cordial e gentil, me sentia parte da família.
- Ei, eu preparei junto com ela - o senhor idoso interviu.
- Claro, papai - e os dois trocaram um sorriso. - Que falta de educação, não nos apresentamos aos convidados.
- Eu sou Olivia - disse a mulher mais velha. - Mãe da Shayara, ela falou muito bem de vocês.
- Me chamo Francis - o velhinho disse com orgulho - e também "melhor pai do mundo".
- Pai...
- Menti?
- Não mesmo - uma senhora de avental e vestido florido falou enquanto aparecia pela porta da cozinha. Cabelos brancos amarrados em um coque no alto da cabeça e óculos pequenos e quadrados apoiados no nariz. Deixou sua lasanha na mesa de vidro, aquilo cheirava ao paraíso.
- Eu sou a vovó Marrie, me chamem assim.
- Okey - eu e a ruiva aceitamos rapidamente.
- Me digam, crianças...
- Não somos crianças, vovó Marrie - Dhalia interrompeu a vovó Marrie.
- Me digam, crianças - ela ignorou totalmente a oposição. - Como está minha queridinha? Comendo bem? Forte?
Dhalia me olhou decepcionada por ter sido ignorada, eu por outro lado segurei o riso.
- Ela está ótima, barba bonita, trabalhando muito... - olhei para minha mão esquerda... - não consigo contar nos dedos o tanto de esforço que ela faz pra seguir bem na vida.
- Oh meu Deus, o que aconteceu com seu dedo? Foi recente? - a mãe de Shayara, Sra. Olívia parecia preocupada como se eu fosse um filho.
- Problemas no trabalho, serralheria e coisa do tipo - me sentia um boneco de desenho animado, só faltava a luva branca.
- Coitadinho - a vovó Marrie lamentou; - venham, sentem na mesa e comam minha lasanha divina.
Todo mundo fitou a mesa e só vimos a silhueta do garfo chegando a boca do Sr. Francis.
- Velhote, que falta de educação, temos visita - a vovó Marrie estava zangada.
- Desculpa, velhinha, eu não consegui resistir - nada é mais fofo do quê um idoso com medo de bronca.
- Por causa disso só vai ficar com esse pedaço até eles irem embora - a vovó Marrie puxou a lasanha e nos ofereceu cadeiras a mesa. - Podem se servir e não sintam medo de repetir, ninguém se contenta com apenas um pedaço.
- Verdade - o velho Francis concordou do outro lado da mesa.
- Você não - vovó discordou.
- Que droga - o velhinho saiu da mesa emburrado, pegou seu chapéu e foi em direção a porta.
- Vai pra onde, papai? - Olivia questionou, sua mão levando uma fatia generosa para o prato.
- Jogar dominó no Joaquim, tchau, queridas.
- Tchau - a vovó e Olívia responderam em uníssono.
- Hummm - tentei formar uma sentença, a boca cheia de comida dos deuses. - Ele tem amigos do dominó, isso é uma velhice legal.
- Hahahahaha - vovó Marrie rio.
- U quie? - Dhalia também não parava de comer.
- Joaquim é um adolescente que chamou meu pai de "Coroa do filme UP" - Olivia explicou achando graça. - Daí o papai joga peças de dominó nele.
- Okey - já estava quase pra morrer de curiosidade e dei uma cutucada na ruiva. - Vamos na cozinha lavar nossos pratos. Tudo bem?
- Claro, um casal precisa de um tempo a sós - vovó Marrie apontou para a porta cedendo seu espaço. - Quando terminarem, vamos conversar um pouco sobre "aquele" assunto.
Eu não sabia qual era o assunto e estava com medo de saber.
- Tudo bem, já voltamos.
Fui para a cozinha fofa amarelo morto e marrom, Dhalia me seguiu e colocou o prato limpo ao lado do meu. A puxei para a janela que tinha vista com a rua.
- Cadê aquela coisa? - falei com um aparente nervosismo na voz.
- A arma?
- Não, minha dignidade.
- Amor - acariciou meu rosto. - Você não tem mais isso.
- Há - tirei sua mão. - Cadê a arma?.
- Caixa de correios.
- E tem isso aqui?
- Tem - respondeu como se duvidasse da minha inteligência, - do lado da porta, passa uma perna por alí.
- Como eu não vi aquilo?
- Você não é muito perceptível - ela olhou pra baixo - e só tem nove dedos.
- O que isso tem a ver?
- Nada, é um charme, parece mais perigoso - ela me deu um selinho e saiu em direção a sala. - Temos que fingir.
- Isso é doentio...
O celular tocou, rezei para que não fosse Mabel. Olha a sorte, era Shayara.
- Oi, amor. É pra levar o leite? - gentil com minha esposa.
Não posso narrar muito bem o que ela disse, mas tem a ver com arrancar algo abaixo da cintura... Com uma ferramenta, mais especificamente um alicate.
- Você não é nem um pouco gentil.
- Deixe de ser covarde, Angelle, termine rápido - a voz de Shayara mudava muito com o humor, falando comigo era sempre um misto de "morra" e "odeio sua existência".
- É a sua família, por que matar eles?
- Testemunhas, descobriram uma pequena coisa e já me ameaçaram de denunciar.
- O quê? Mas eles estão sendo gentis, a Dhalia até guardou a arma com medo deles verem - estava desacreditado, não existia mais porto seguro, eu estava cercado de lunáticos e psicopatas.
- Exatamente, vocês dois são para tirar a suspeita, o fingimento. Inventei de vocês estarem com problemas no sexo e como vovó Marrie é ginecologista ela vai ajudar e então "pow" - a onomatopeia de tiro foi a melhor parte.
- Eu vou ignorar a parte do problema e te perguntar logo - fiz uma pausa, analisando o piso da cozinha, ele ainda estava lá. - É nossa única forma de pagamento?
- Sim, estou sendo gentil com vocês. É isso ou nada, quando acabar eu vou encobrir e nunca mais quero ver sua cara de merdinha na minha frente. Compreendeu?
- ......... Entendi.
O celular ficou silencioso.
Peguei a arma na mão, girei observando se estava pronta para aquilo. Bem, eu com certeza não estava.
Fui até a sala e vi Dhalia conversando com Olívia e a vovó Marrie, com certeza tinha entrado na brincadeira. Eu queria vomitar, meus olhos estavam queimando dentro da órbita.
- Venha aqui, filho - ela me convidou para sentar no tapete, olhando para ela no sofá. Obedeci.
- Estava com sua parceira, deixamos algumas coisas claras e sanamos algumas curiosidades...
Enquanto a vozinha falava, Olívia me deu um suco de maracujá.
- ... E queria saber como você se prontifica a cooperar com ela nessa nova fase da relação.
- Hummm. Sobre? Sou meio esquecido - ela queria algo específico e eu não sabia de nada.
- Acho bom engolir o suco - advertiu a ruiva.
- Bem, sobre a relação anal...
Agadeci o aviso, quase me engasgo com aquilo.
- Hummmm vovó Marrie...
- Calma, é normal a timidez - ela fitou Dhalia, o que a deixou assustada com o ato. - Afinal é o corpo dela.
- Mais especificamente meu c*...
- Aaaaaaa!!! - tentei interromper.
- Pois bem, vovó Marrie - prossegui. - Shayara não explicou bem, ela exagera com os amigos e coisa do tipo. Queríamos apenas saber se você recomenda... - tentei achar alguma mentira. - Lubrificante aromatizado?
- Sim, é até melhor - ela concordou rapidamente. - Me lembro da minha primeira vez com o Francis, fiquei sem andar por dois dias...
- Mamãe!!! - Olívia interrompeu com vergonha.
- Estou ajudando eles, Olívia. Preciso fazer se sentirem confortáveis.
Eu não estava nenhum pouco confortável, saber que minha vó e meu vô... Espera, eles não eram meus parentes.
- Obrigado, vou agradecer muito a Shayara quando sairmos daqui. Ela falou tão bem e agora concordo com ela - quando terminei de falar um semblante de tristeza caiu sobre as duas mulheres. - Ah, me desculpa... Eu não queria.
- Calma, você não fez nada de errado. Shayara faz bastante falta aqui, antes como Jony e agora como ela mesma - Olívia enxugou uma lágrima no canto do olho. - Toda energética e ranzinza, não deixando ninguém triste...
- E ainda cantava bem, fazia as duas vozes de "The Chain" nas noites de Karaokê - vovó completou feliz.
- Isso é impressionante - realmente era impressionante, amava aquela música.
- Ela adora rock clássico, isso é fato. Se tiver KISS, não precisa ter mais nada.
Como eu tinha tanta coisa em comum com a pessoa a qual arrancou meu dedo? Era bizarro.
- Entendo, ela saiu de casa por conta da aceitação e da transição? - Dhalia parecia muito curiosa, estava criando empatia pela família; e nós tínhamos que matar todos alí. - Vocês se referem no feminino e parecem tão gentis.
A ruiva não queria fazer aquilo, sentia tristeza na sua voz, as vezes seus dedos tremiam.
- Não é pela gente, é o irmão dela... No dia da revelação eles brigaram feio, quebraram a porta do vizinho - isso explicava a porta de cor diferente. Imaginava o tamanho do irmão de Shayara, ela já era um armário.
- Então ela escolheu deixar a família ao invés de brigar novamente - vovó Marrie continuou narrando a perda da sua neta preferida.
- Não podemos fazer nada, meu filho é quem paga os remédios do papai - Olívia adicionou mais alguns fatores para odiar a imagem fraterna da mandante do crime.
- Não podem fazer nada - repeti para mim mesmo.
- Querem mais suco? - o assunto mudou repentinamente.
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Aqueles Perigosos Cabelos Rubros
RomanceObs: Não conto essa história porque eu quero. Mas séria um erro não falar dela Pois bem, uma noite de ano novo te proporciona todas as maravilhas do mundo. Bem, não trouxe nada disso para mim. Eai, sou Ezio, feliz ano novo. Minha maior meta? D...