Capítulo 7

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Então eu sonhei com Ping.

Eu nem deveria estar dormindo, para começo de conversa, mas quando entrei na tenda minha cabeça parecia prestes a explodir. A fúria pela declaração de Chi Fu somado aos estranhos pensamentos sobre Ping, e obviamente aos sentimentos que ele me trazia, fizeram com que eu tivesse uma vontade estonteante de fechar os olhos.

Assim deitei-me brevemente e quando vi, estava na beira do rio com Ping que ria e me puxava pela mão, dizendo que precisava me contar um segredo. Lembro de mesmo no sonho ter essa sensação de que Ping guardava algum tipo de segredo — acordado eu também tinha essa sensação. Meu palpite era o de que Ping fugiu de casa, alistando-se na guerra sem o consentimento do pai. — Ele então soltou o cabelo, permanecendo enrolando a fita entre os dedos. Havia algo em seu rosto... Uma delicadeza... Percebi que nunca havia visto Ping com os cabelos soltos. Ele parecia muito mais jovem, parecia...

Uma mulher.

Abri os olhos na parte do sonho em que por algum estranho motivo meu rosto estava ficando próximo do dele. O que era um absurdo. Absurdo! Sonhando com um recruta. Eu. Um homem, pelo amor dos deuses!

Sabe o que eu precisava? Sim, de uma mulher. Provavelmente precisaria me casar assim que a guerra acabasse. Era isso ou me descobrir tendo sonhos absurdos com garotos que fugiram de casa e se alistaram no exército. Isso ainda iria acabar com a minha carreira!

Levantei-me esfregando os cabelos, tentando livrar-me da sensação de meus dedos tocando o rosto de Ping, a maciez que eu tinha certeza que ele não tinha, mas que meu cérebro ficava criando... Balancei a cabeça, parando em frente à mesa e curvando-me para pegar um copo com água. Confesso que relanceei para o jarro, considerando jogá-lo na minha cara. Infelizmente fui interrompido por Chi Fu... Em seus trajes de banho.

Por um segundo considerei ainda estar sonhando.

Chi Fu enrolado em uma toalha, pingando água dentro da minha tenda.

Não. Era um pesadelo.

— Comandante! — ele gritou em uma prova de que aquela cena realmente não podia estar acontecendo. Chi Fu me chamando de "comandante" sem ironia? — mensagem urgente do general! — ele avançou até mim aos tropeços entregando-me uma missiva. — somos necessários no front!

— Quem te entregou isso? — perguntei, tentando me ater à realidade enquanto analisava o pergaminho. Não me parecia que aquele pedaço de papel tivesse viajado desde o front até nós no acampamento. O pergaminho parecia ter acabado de sair da escrivaninha de um escriba, para ser mais exato, e aquela letra não era a de meu pai, apesar do autor se denominar general.

— Nós somos necessários no front! — insistiu Chi Fu, antes que eu pudesse questioná-lo sobre sua estranha história.

Disse ele que a missiva tinha sido entregue por outro general, um homem montado em um Panda. — Um Panda! Chi Fu em trajes de banho me chamando de comandante e eu sonhando com Ping. Chego a achar que doparam nossa sopa no jantar. — E sua impaciência não me permitiu pensar muito a respeito, embora muitas suspeitas rondassem minha cabeça.

Ainda assim as tropas foram armadas e levantamos acampamento antes que o sol nascesse. Colocamos os homens para marchar em direção ao front mesmo que eu continuasse me perguntando como alguém montaria em um Panda. E por que meu pai não enviaria um emissário a cavalo, como normalmente faria?

Havia duas opções: ou algo muito grave acontecera ou essa história toda era uma armadilha e eu estava muito mais propenso a acreditar na segunda opção. Ainda assim não consegui demover Chi Fu. Para um homem do imperador ele havia se deixado levar rapidamente pelo chamado absurdo. Provavelmente ele também estava cansado de permanecer no acampamento depois de dias treinando os recrutas e trocando farpas comigo.

Assim como ele eu também daria tudo para colocar os homens na batalha, mas se pudesse escolher não o faria dessa forma e Chi Fu não me dera tempo para enviar outro emissário confirmando o requisito de meu pai, além do mais, se algo urgente tivesse acontecido ele sequer teria tempo de me responder.

Avançamos lentamente.

Os homens começaram a cantar lá pelo entardecer enquanto atravessávamos longos campos de arroz com jovenzinhas mergulhadas até os tornozelos com seus cestos.

Viu, Shang? É disso que você precisa. Jovenzinhas camponesas mergulhadas em lagos, sorrindo, acenando e desviando o olhar quando você passa. Você precisa de...

Alguém para quem voltar.

Olhei por sobre o ombro brevemente enquanto a melodia ia crescendo, chegando até mim no começo da fila. Zhen balançou as orelhas e bufou, ecoando meus pensamentos. Os soldados cantavam sobre suas mulheres ideais, aquelas por quem eles voltariam da guerra, aquelas que fariam comida para eles, curariam suas feridas e...

Atrasei um pouco o passo de Zhen tentando ouvir o que Ping cantaria. Sabe-se lá por que eu estava curioso, mas ele parecia contrariado com a cantoria e quando seus amigos o envolveram pelos ombros, cantarolando, Ping perguntou o que os demais achariam de uma mulher que usasse o cérebro, o que claramente não agradou aos demais. Eu sorri e avancei com Zhen. Então esse era o tipo de Ping? Mulheres inteligentes? Quase ri tentando imaginar como alguém tão franzino e atrapalhado como ele conquistaria uma mulher inteligente.

Bem, eu não era um expert em mulheres. Talvez elas se atraíssem por tipos como Ping... Talvez eu devesse mesmo apresenta-lo a Qingshan. Ela daria trabalho a ele... Ou não. Eles pareciam ter um jeito parecido, um espírito rebelde. Pensando bem eram parecidos até demais, até a altura deles era semelhante e quanto mais observava, mais parecidos se tornavam.

O pensamento me desagradou tanto que galopei com Zhen para a ponta da fila, passando por Chi Fu, que cobria o rosto com o capuz ao cantar algo junto com os demais. Ora, quem diria que ele cantava?

Meu dia estava cheio de surpresas.

Tentei esquecer a maldita cantoria, mas agora só conseguia me perguntar o que eu desejava. O que te agrada, Li Shang? Parece que todos os demais sabem o que gostam, até o ingênuo Ping... Me peguei olhando por cima do ombro para ele, desta vez prestes a receber bolas de neve dos colegas. O grupo continuava cantando. Chega. Eu não tinha a intenção de ficar me comparando com os demais ou reparando em um garoto novato.

Começara a nevar e vi no horizonte a bandeira do acampamento. Galopei em direção a ele como se fugisse de demônios que me caçavam, mas mal sabia que estava caindo nas garras de outro pesadelo, pois o acampamento de meu pai no front tinha sido destruído.

Assim todos os pensamentos sumiram de minha mente, substituídos por puro terror.

Li ShangOnde histórias criam vida. Descubra agora