Capítulo 4

1K 131 72
                                    


— Soldados!

Tão logo minha voz soou pelo acamamento, os recrutas se organizaram em um semicírculo ao meu redor, todos apontando para a mesma figura encolhida no chão. Eu esperava que mantivessem esse nível de organização durante o treinamento.

— A culpa é dele! — disseram e suas vozes preencheram o acampamento. Segurei a vontade de rolar os olhos.

O garoto encolhido no chão não se mexeu até que minha sombra estivesse assomando sobre ele, quando então um olho redondo me espiou por trás dos braços. O garoto pigarreou ficando rapidamente em pé, acertando o uniforme. Ele era pequeno e parecia muito novo.

Deixe-me adivinhar... o típico filho de algum nobre, sem noção alguma da realidade, que o tinha enfiado na guerra para provar seu valor.

— Eu não quero ninguém criando problemas. — falei, especificamente para ele, pois tinha certeza que ele me daria trabalho. Já estava dando. E eu estava há menos de uma hora ali.

O garoto murmurou um "desculpe" quase inaudível.

Então pigarreou e engrossou a voz.

— Desculpe a bagunça. — eu realmente não gostei do tom de voz dele. Beirava ao desrespeito — mas sabe como é, — ele continuou, tendo a ousadia de me dar um soquinho camarada no braço como se fossemos velhos conhecidos em uma taverna. Nem meus velhos conhecidos faziam isso. Que diabos de ousadia era essa?! Atrás de mim podia sentir a sombra de Chi Fu espreitando com sua prancheta, questionando minha autoridade silenciosamente — é a masculinidade. Dá vontade de quebrar as coisas, de falar palavrão...

Que diabos de masculinidade era esse que ele achava que conhecia?

Eu podia mandar ele para casa?

— Qual é o seu nome? — o interrompi e o garoto pareceu ficar perdido. Ele gaguejou tanto olhando para os próprios pés que até Chi Fu sentiu-se obrigado a passar por cima da minha autoridade.

— Soldado, o seu superior fez uma pergunta! — bradou ele, movendo o pincel.

Ótimo, agora eu precisava que alguém me ajudasse a manter minha postura de superior, como se meu próprio comando não bastasse. Tudo por causa de um garoto mimado bagunceiro...

Obrigado Chi Fu, por me desrespeitar.

— Eu tenho um nome — respondeu o garoto enquanto eu ainda tentava controlar minha raiva — e é um nome de homem, viu? — ele realmente precisava fazer essa constatação? Ele achava que pensaríamos que o nome dele era o de que, de um dragão? O garoto então moveu a cabeça na direção de outro homem do grupo, sussurrando — o nome dele é Ling.

Isso tinha que ser um teste para mim.

— Eu não perguntei o nome dele! — podia sentir meu humor escalando rapidamente para algo mais agressivo e uma das poucas coisas que me desagradava era perder o controle — eu perguntei o seu!

— Ah Chu.

—A Chu?

Que nome é esse?!

Tem mesmo que ser um teste.

— Mushu — murmurou o garoto.

— Mushu?

— Não! — ele quase gritou, a voz subindo algumas oitavas.

— Então qual é? — eu gritei de volta.

Sou um capitão, pensei. Um capitão perdendo o controle com um novato...

O garoto pensou mais um pouco, então respondeu:

— É Ping.

— Ping?

Será que finalmente ele decidiu qual é seu maldito nome? Eu observei os traços do garoto me perguntando quantos anos teria de verdade. Seu rosto era tão suave que eu duvidava que já tivesse alguma vez feito a barba na vida. Precisávamos avisá-lo que não admitíamos crianças na guerra.

O garoto, Ping, aparentemente, levou uma mão às costas casualmente.

— Isso, meu nome é Ping.

— Deixa eu ver sua convocação.

Toda vez que eu perguntava algo ele arregalava ligeiramente os olhos, como uma corça assustada. Não sou adivinho, mas sou bom em leitura corporal. Ping estava mentindo sobre alguma coisa, mas eu não fazia ideia do que. A idade provavelmente. Ou talvez tivesse vindo escondido dos pais... Ou talvez não tivesse convocação. Essa era minha esperança. E aí eu me livraria dele.

Mas não. Ele tinha uma convocação. E vinha de uma boa família.

— Fa Zu? — eu me espantei, olhando do garoto magricela para o papel em minhas mãos de novo. Por trás de mim Chi Fu também lia a convocação. — Aquele Fa Zu? — ele tinha sido um grande guerreiro. Meu pai contava histórias sobre ele, de quando batalharam juntos na juventude. Ele tinha um ferimento de guerra e era um herói que se retirara do exército para cuidar da fazenda e da família.

— Que eu saiba nem filho tinha — comentou Chi Fu, fazendo eco aos meus pensamentos.

O garoto, que ouvia nossa conversa, se adiantou:

— Isso é porque ele não fala muito de mim — ele riu e talvez tenha tido um engasgo. Não sei exatamente o que aconteceu, mas ele acabou se curvando para cuspir na grama e ficou todo cheio de baba.

— Já sei porquê — disse Chi Fu, em tom alto o suficiente para que todos o ouvissem e compartilhassem da piada — o filho tem acessos de loucura.

Meus únicos pensamentos eram:

Como eu poderia coloca-lo na guerra? E... Não, não vai dar para me livrar dele. Não se ele tinha uma convocação no nome de Fa Zu.

Com ou sem acessos de loucura.

A turba começou a rir e não era um bom momento para perder o controle do grupo. Eu teria de lidar com Ping e seus acessos depois. Entreguei a convocação a Chi Fu e me dirigi ao grupo, retomando sua atenção:

— Muito bem senhores, graças a seu novo amigo Ping, passarão a noite agradável escolhendo arroz na cozinha e amanhã o trabalho de verdade começa.

Amanhã.

Porque eu certamente preciso de tempo e uma estratégia muito boa.

Li ShangOnde histórias criam vida. Descubra agora