Capítulo 8

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— Busquem sobreviventes!

Eu mal me lembro de ter dado a ordem. O acampamento e a aldeia tinham sido destruídos, transformados em cinzas em meio à neve e a resquícios do fogo. Uma nuvem laranja obscurecia o horizonte e nos cobria com uma cortina de fumaça. O inimigo ainda podia estar nos observando oculto por ela, de forma que não me permiti baixar guarda mesmo que meu coração se retorcesse.

O comandante que eu havia me tornado me manteve firme em cima da sela com o semblante fixo na confiança que meus homens precisavam ver em mim. Me manteve firme quando vigas desabaram e Zhen recuou alarmado. A cada flâmula rasgada ou queimada, a cada visão parcial de algum corpo soterrado nos escombros, não me permiti falhar. Mas eu estava sangrando por dentro como apenas um homem mortalmente ferido sangra.

Como um homem em batalha sangra junto com todas as vítimas mortas ou feridas.

Agarrei-me a toda e qualquer esperança e quando o desespero subiu por minha garganta freei Zhen e busquei respirar fundo para me acalmar. Eu, de todas as pessoas, não podia deixar nada transparecer. Não era minha função como comandante, não era minha missão como filho e como homem do imperador. Eu tinha que me manter firme.

Olhei ao redor verificando os homens. A maioria seguia andando cautelosamente entre os escombros sem ter surpresas, todos tão alarmados e receosos quanto eu. Ainda assim... Nenhum deles tinha um pai no front.

Ping estava parado logo à frente. Tinha alguma coisa nas mãos e parecia tão desamparado quanto eu. Lembrei-me que uma de minhas teorias era a de que ele roubara o lugar do pai na guerra. Era uma coisa que eu faria se meu pai fosse velho demais para lutar, era o que eu gostaria de ter feito neste exato momento... Embora roubar a morte nobre de um homem servindo ao imperador na guerra fosse uma desonra. Por que alguém faria isso?

Ou melhor, se existia Ping, e o exército tinha convocado um homem de cada família, por que Ping teria roubado o lugar do pai? Ele não havia roubado nada, tinha cumprido com seu dever de filho. E eu deveria parar de ficar devaneando sobre Ping...

Mas Chi Fu tinha dito que não sabia que Fa Zhou tinha um filho.

Ora, dane-se. Não havia tempo, nem era momento, de se questionar isso.

Me aproximei e apeei do cavalo. Os olhos dele estavam cheios de tristeza e tenho certeza, embora não saiba como identifiquei isso, que ele queria me confortar.

— Não consigo entender — disse, embora entendesse. Só não queria admitir — meu pai deveria estar nesta aldeia.

E ele tinha estado, mas o inimigo também.

Queria que Ping tivesse dito aquilo que estava escrito em seus olhos. Palavras de conforto, um consolo ou mesmo que negasse. Eu adoraria ouvir que meu pai não tinha estado ali. Que tínhamos sido enganados pelo inimigo, mas meus devaneios não puderam ir muito longe.

— Comandante! — Chi Fu chamou em um tom falho que nunca o ouvi usar. Estava parado na borda de um declive, com a respiração acelerada.

Lá embaixo estavam os corpos que não tínhamos encontrado antes. Nossos soldados e os moradores da aldeia, bem como suas montarias e os animais de criação do vilarejo. Quando me aproximei já sabia o que encontraria, mas ainda assim tive que prender a respiração ante o impacto da visão. Todo soldado sabe o que o espera na guerra, mas ver a morte de frente é sempre um lembrete de como não temos controle de nada.

O soldado Chien Po veio ao nosso encontro trazendo um capacete nos braços, que me estendeu cuidadosamente.

— Acho que é do general. — ele disse e eu não pude mais me iludir. A realidade me atingiu como uma bala de canhão.

Peguei o capacete e minhas mãos não tremeram. Fosse de raiva ou tristeza e fiquei grato.

Shan Yu e seus homens tinham deixado um recado claro com aquela chacina. Uma imposição ao imperador e uma afronta à China. Mas ele pagaria por isso.

Eu o faria pagar.

Mas antes... Precisava de um momento para me recompor. Organizar meus pensamentos. Acalmar todas as emoções que me percorriam. Pensei em Qingshan, em minha mãe, em Ru Shi, nas mulheres de minha casa e não pude evitar pensar que todas elas estavam sob minha responsabilidade agora. Pensei em como receberiam essa notícia e por um segundo me permiti imaginar um futuro onde eu também não conseguia vencer a guerra e voltar para casa.

Mas não havia tempo para esmorecer e deixar esse pensamento crescer. Se o fizesse aí sim eu não sobreviveria. Um soldado fragilizado é um alvo fácil para o inimigo.

Mirando o horizonte prometi ao espírito de meu pai, aonde quer que estivesse, que cuidaria delas e que faria meu melhor para vencer a guerra por ele.

Finquei minha espada na neve e o capacete sobre ela, um memorial que não sobreviveria muito tempo, mas que estaria ali por tempo o suficiente. Um dia eu voltaria e levaria a espada e o capacete e talvez deixasse um memorial em pedra para ele, algo gravado para que o tempo jamais se esquecesse do general Li.

Ao reverenciar meu pai morto senti que aquele foi o momento mais vulnerável de minha vida.

E, obviamente, Ping estava ali.

Eu ouvi seus passos na neve antes que chegasse até mim, mas já sabia que era ele. Quem mais teria a ousadia de interromper a oração de um capitão que perdeu o pai e seu general?

Uma mulher, Qingshan responderia.

Ping, eu diria.

— Foi uma grande perda. — ele disse baixinho.

Mas suas palavras, lá no fundo, me aqueceram e reconfortaram. O único gesto que consegui fazer para corresponder ao cuidado dele foi tocar seu ombro, que espero ter sido suficiente para ele entender que admirava sua preocupação e aceitava seu conforto.

Quando voltei a montar Zhen sabia que uma parte de minha vida tinha acabado, ou antes, se transformado completamente. Agora eu estava sozinho. As decisões eram só minhas, sem apoio de mais ninguém.

Eu me achava homem antes, mas na verdade só soube o peso disso naquele momento. Pela minha família, pelo imperador e pelo meu país, eu teria que liderar a guerra. E ter sucesso contando apenas com meus homens... Que nunca tinham estado na guerra.

— Os hunos não param de avançar. — virei meu cavalo para que pudesse apontar para as montanhas — O caminho mais curto para a Cidade Imperial é pela passagem Tung Shao, homens — quando eu meu pai conversamos sobre impedir os hunos de destruírem essa aldeia. O plano dele parecia infalível. Bem... não tinha sido. Mas eu ainda lembrava seus movimentos e estratégias — Somos a única esperança do imperador agora.

Esperava que eles absorvessem a importância e o peso disso.

— Vamos marchar!

E assim... Marchamos. 

Li ShangOnde histórias criam vida. Descubra agora