Passei a noite em claro, convocações e listas de nomes em mãos enquanto meus olhos percorriam a tinta dos pergaminhos decorando cada caractere, cada família e cada homem em meu poder. Eles pareciam frágeis em campo. Homens cujo passado jamais se desenhara para a guerra no futuro, eram filhos de camponeses que sabiam lavrar a terra, alguns filhos de comerciantes, gente simples. Muito simples. Alguns eram pais de família; o único homem da casa e aquele que deveria servir ao imperador agora.
Tentei não pensar nessas famílias cujo pai teve que partir, talvez para nunca voltar. O país e o imperador vinham em primeiro lugar. Porém, não pude impedir meus pensamentos de vagarem de volta à minha casa, me perguntando o que Qingshan, Ru Shi e minha mãe estariam fazendo. Elas tinham ao mesmo tempo dois homens na guerra; o pai e o filho. O tio e o primo, no caso de Ru Shi. Seria difícil? Elas normalmente só demonstravam orgulho... Mas enquanto viajava de volta para casa vi reencontros entre familiares e colegas meus, colegas que sequer tinham estado na guerra, mas essas pessoas demonstravam a gratidão e o orgulho por estar de volta mesclados à dor e saudade. Me perguntei se por trás de toda euforia das mulheres de minha casa elas também compartilhavam esse sentimento dolorido daquelas que não podem, nem deveriam, estar no exército e muito menos na guerra.
O sentimento daqueles que ficaram para trás.
Meus olhos ardiam depois de tanto tempo lendo na claridade bruxuleante do lampião, então deixei os papeis de lado e o apaguei, deitando na superfície dura e conhecida do interior da tenda.
No dia seguinte eu teria uma longa jornada para treinar esses homens. De olhos fechados relembrei o que vi do acampamento, a algazarra e a bagunça. Eram indisciplinados, despreparados... Nenhum deles sonhara estar na guerra um dia.
Mas agora estavam.
E eram minha responsabilidade.
Pela manhã eu já ouvia a algazarra recomeçando junto com o nascer do sol. Aqueles homens não conseguiriam se manter em silêncio nem que suas vidas dependessem disso. No campo de batalha morreriam por simples desorganização.
Esfreguei o rosto sem me permitir vacilar, sem permitir que nenhum questionamento sobre minha capacidade de treiná-los se infiltrasse. Eu teria de transformá-los em guerreiros e seria capaz disso. Com a ajuda de todos os meus ancestrais...
Saí da tenda ouvindo as piadas que faziam com Chi Fu. Ele merecia! Algumas eram bem criativas. Reprimi um sorriso. Eu certamente não podia ser influenciado pela balburdia. Quando entraram em meu campo de visão um deles segurava o colega pelo colarinho e, ah por todos os céus, iam começar a brigar de novo! O menor escondia o rosto entre as mãos e não precisei de muito para reconhece-lo como sendo o rapaz do dia anterior.
Ping.
O menor e mais franzino de todos os futuros soldados. Seria possível que eu teria que manter vigilância constante em cima dele, caso contrário a guerra explodiria entre eles antes que chegássemos à batalha?!
—Soldados! — chamei, satisfeito por pelo menos ver que todos tinham a capacidade de formar uma fila e manter a postura. — Vão se apresentar em ordem e silêncio todas as manhãs — passei meus olhos claramente em Ping e no homem ao seu lado, em um alerta silencioso, antes de pegar o arco e a aljava. — Qualquer um que desobedecer vai se explicar.
Ouvi o homem ao lado de Ping resmungar algo. Eu sabia quem ele era.
— Yao. — disse, empunhando o arco e a flecha. Se eu estava tentando intimidá-lo? Um pouco, confesso. Infantil da minha parte? Talvez. Mas homens são assim, como dissera Ping, e ele talvez estivesse certo. A gente às vezes tem mesmo vontade de quebrar as coisas... quando não é obedecido. Mas auto controle é tudo e eu não iria ferir meu soldado. Só queria lhe passar uma mensagem clara.
Yao tinha um passado de brigas, eu conseguira a informação com Chi Fu, que parecia ter olhos por toda a China. Ele tinha uma cicatriz em um dos olhos, um ferimento permanente, e um espírito desafiador que precisaria ser controlado. Eu me julgava capaz de coloca-lo em rédeas curtas.
A fila de homens recuou com uma arquejo audível, revelando o grupo de camponeses despreparados para a guerra que habitava o interior da pele desses projetos de soldados. Homens que em sua maioria não viam armas todos os dias.
Eu podia contar nos dedos de uma mão aqueles que eram filhos de ex soldados, como o franzino Ping, por exemplo. Ainda assim todos prenderam a respiração. Yao também, o medo transparecendo em seu rosto, mas ele não recuou e julguei isso positivo. Se fosse um inimigo mirando-o na batalha ele talvez conseguisse enfrenta-lo.
— Obrigado por se apresentar — eu disse, depois de ter disparado o arco na direção do topo da maior viga do acampamento. — Pegue a flecha.
Yao, menos assustado agora, esfregou as mãos como se a flecha estivesse bem ali, ao lado, e não solitária à metros e metros de altura.
— Vou pegar bonitão — ele resmungou de forma audível e desafiadora e senti meu sangue ferver levemente. — E fique olhando porque não vou nem suar.
Indisciplinado.
— Espere aí — eu o chamei, lutando para me manter calmo como a brisa de verão — Eu acho que você anda meio esquecido — esquecido de seu lugar e do meu como capitão, mas não completei o pensamento. Me aproximei dele ao lado do poste, fazendo sinal para que Chi Fu me seguisse carregando uma caixa dos pesos. Eu lembrava de quando os usei na minha época de treinamento. Para mim e meus colegas não fora tão difícil, mas nós todos erámos jovens que almejavam isso, queríamos lutar. Peguei os discos e passei as alças no punho direito de Yao — Este representa disciplina — eu o soltei e Yao vergou com o peso. Os homens riram. Indisciplinados, todos eles — e este representa força. Um só se completa com o outro.
Eu esperava que ao menos um deles entendesse a metáfora e a lição por trás dela, mas ao invés disso assisti a um atrás do outro, cada um dos meus soldados, falhar sem nem chegar perto de sair do chão ou chegar à metade do caminho para recolher a flecha.
O último a tentar e falhar foi Ping. Ele mal parecia conseguir manter os dois pesos equilibrados nos pulsos. Pelo que me consta ele poderia ser uma criança... Pequeno, franzino, fraco.
Ele passou por mim evitando meu olhar, mancando ligeiramente.
Seria possível transformá-los em soldados?
Esfreguei minha nuca, suspirado, já sabendo a resposta.
— Vai ser bem complicado...
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Li Shang
Romance"Líder chinês das melhores tropas de todos os tempos." História da Mulan narrada pelos olhos do capitão Li Shang. É uma pequena homenagem a uma história e a um personagem de que gosto muito e que marcaram não só minha infância, mas a de uma geração...