Eu estava de volta à minha casa. Parecia um sonho inacreditável. Virei-me na cama e o sol entrando pela janela tocou meu rosto. Fechei os olhos sem pressa alguma para levantar. Uma procissão de imagens passou por minhas pálpebras fechadas. A noite anterior parecia ter acontecido em uma realidade paralela, muito distante.
Ontem eu tinha derrotado os hunos no palácio do imperador. Hoje eu estava no quarto em que cresci, na mesma casa em que passei toda minha infância. Uma semana atrás eram os sons das batalhas que enchiam meus ouvidos, os gritos dos soldados, as reclamações de Chi Fu... Hoje, Zhen relinchava em sua baia, minha irmã e minha mãe discutiam na cozinha com suas vozes se elevando cada vez mais e ao longe os sons do vilarejo pacífico chegavam até mim.
Virei-me na cama, incerto sobre o que fazer agora. Não havia tropas para treinar, homens para comandar, nem Chi Fu para me irritar ou hunos para derrotar. Deveria me trocar e deixar-me ser guiado por minha mãe para a casamenteira, assumindo meu lugar como homem da casa? Ou sentar no lugar de meu pai à mesa e assumir as funções dele imediatamente?
Ou deveria tomar coragem e finalmente contar sobre Mulan para minha família?
Eu sabia que Qingshan estava só esperando o momento oportuno para me pressionar a explicar tudo sobre a heroína da China. Na noite passada eu só tinha sobrevivido porque minha mãe estava mais preocupada em ter-me de volta, vivo e inteiro em seus braços, do que perguntar detalhes sobre a guerra, mas certamente essa trégua não duraria mais um dia.
— Irmãozão? — como que invocada Qingshan surgiu na porta, espiando cuidadosamente. Virei o rosto contra o travesseiro, fingindo dormir. — Ah, ótimo! Você está acordado! — ela saltitou para dentro do quarto deixando a porta aberta.
— Não estou não. — respondi com o rosto ainda enfiado no travesseiro. Ela não se importou. Senti quando se sentou ao meu lado.
— Quem era ela?
Um objeto duro, que presumo ser o cotovelo dela, cutucou minhas costelas, forçando-me a me afastar. Joguei o travesseiro em Qingshan, que deu um gritinho.
— Ela deve ser importante se te deixa tão irritado.
— Não estou irritado — respondi, cedendo e me sentando — só quero alguns minutos de paz pela manhã.
— Você é um soldado, se estiver sempre em paz fica sem trabalho. — Qingshan declarou, estalando a língua. Então dobrou as pernas em cima de meu colchão, claramente pretendo não sair tão cedo. — Fa Mulan. Só se fala dela. Creio que não levará nem uma semana para que toda a China a conheça, mesmo o mais distante dos vilarejos... E você aqui tendo informação privilegiada e não me contando!
Rolei os olhos e saí da cama.
— Vou comer.
Qingshan me seguiu até a mesa da sala, onde prontamente sentou ao meu lado.
— Oh o grande capitão Li Shang, herói da China, despertou. Preparei algo especial para você! — disse minha mãe, servindo uma profusão de comida, todas as minhas favoritas. Em seu rosto havia um toque de tristeza, mas percebi que ela não queria que falássemos de meu pai, pelo menos não por enquanto. Eu lhe daria esse tempo.
Ao meu lado Qingshan franziu o nariz.
— Ele não é o herói da China. Mulan é.
— Eu a treinei. — Devolvi o comentário, roubando um pouco da glória de Mulan para mim, o que era bastante justo, afinal se ela tinha conseguido vencer Shan Yu não fora por saber se portar diante da casamenteira, mas sim por ter sido treinada por mim.
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Li Shang
Romance"Líder chinês das melhores tropas de todos os tempos." História da Mulan narrada pelos olhos do capitão Li Shang. É uma pequena homenagem a uma história e a um personagem de que gosto muito e que marcaram não só minha infância, mas a de uma geração...