Que infernal marcha até a Cidade Imperial.
A notícia da vitória havia se espalhado pelo caminho, mas eu me sentia destruído. De tempos em tempos me pegava pensando em Ping. Ou Mulan. E no que ela teria feito. Se tinha voltado para casa e em qual seria a reação de seu pai.
Os soldados pareciam igualmente abatidos e desolados.
Eu nunca havia reparado que Ping fazia tanta falta. Nem que sua traição fosse pesar tanto.
A Cidade estava em festa, mas nosso ânimo não refletia o espírito da vitória. Tínhamos sofrido uma grande perda. Tivemos por um instante um grande herói, mas sequer poderíamos contar sua história.
E por que? Me perguntei, para não sujar sua honra, capitão? Você não quer ser diminuído por admitir que foi enganado por uma mulher?
E salvo por ela depois?
Bem, eu a salvara também. A lei punia com morte a traição entre os soldados. Eu só não sabia se isso se aplicava a heroínas que salvam a China, mas também nunca havíamos tido uma. Ainda assim ela ficara para trás. E não foi com a presença dela que fizemos nossa marcha da vitória pelas ruas da Cidade Imperial, ovacionados pela população.
Havia fogos de artifício, músicos, acrobatas, lanternas, o grande dragão imperial manuseado por alguns homens nos escoltando. Crianças acenavam e tentavam nos tocar. Mulheres sorriam e se abanavam com seus leques e homens aplaudiam e faziam reverências enquanto lentamente nos aproximávamos do palácio.
— Deem passagem para os heróis da China! — diziam, mas não nos sentíamos heroicos.
Vi minha mãe, Qingshan e Ru Shi em meio à multidão, acenando para mim. Elas com certeza tinham recebido a notícia da morte de meu pai, mas tinham ido à Cidade Imperial comemorar comigo. Olhei aquelas três mulheres tão importantes para mim, sabendo que sua alegria era devida ao heroísmo de outra mulher, uma que eu deixara para trás, e soube que as havia traído. Desviei o olhar discretamente.
Talvez quando a festa acabasse e estivéssemos de volta em casa eu contasse a elas sobre Mulan e deixasse que decidissem se eu estava contando a verdade ou só inventando histórias para entretê-las e distraí-las de sua perda.
O que achariam de Mulan?
— Shang!
Oh céus, eu seria perseguido por essa voz o restante da vida, não é mesmo?
Mas quando me virei ela estava ali, emparelhando seu cavalo negro com o meu, vestindo sua roupa de soldado, sem armadura, de cabelos soltos e sem artifícios, deixando um rastro de burburinhos atrás de si.
— Mulan?
Senti imediatamente que o grupo reviveu, até mesmo eu... Então lembrei que ela tinha enganado a todos nós.
— Os hunos sobreviveram e já chegaram — disse ela, toda imponente.
Ora, quem ela achava que era? O capitão?
— O seu lugar não é este, Mulan, vá embora.
Aparentemente eu não conseguia parar de repetir o nome dela.
Volte para o seu mundo de mulher, que é o seu lugar. Eu a salvara de sua atitude mal pensada em enganar o exército, ela não podia simplesmente agradecer e voltar para casa?
Claro que não, afinal ela era uma mulher e como tal tinha aquela conhecida dificuldade em ouvir não. E obedecer.
Acabo de descobrir porque não convocamos mulheres para a guerra. Apesar de salvarem a China, não conseguem respeitar a palavra "não".
VOCÊ ESTÁ LENDO
Li Shang
Romance"Líder chinês das melhores tropas de todos os tempos." História da Mulan narrada pelos olhos do capitão Li Shang. É uma pequena homenagem a uma história e a um personagem de que gosto muito e que marcaram não só minha infância, mas a de uma geração...