Através das minhas cansadas retinas eu vi essa vinheta escurecendo tudo ao meu redor e a vertigem vindo me aconselhar novamente. Parei de fronte ao bebedouro, tomei água como se pudesse melhorar, o líquido gelado com sabor férrico devido ao objeto de metálico de baixa qualidade a qual meu colégio proporcionava desceu pela minha garganta, rasgando meus tecidos e fazendo meus longos pelos eriçarem, almejava poder aguentar o fardo da dor de cabeça, da tontura e da fadiga através de grandes goles desse líquido incolor que se fazia minha principal fonte de alimento há semanas. Faz-se lúcido que não adiantou, permaneci fraca, cambaleando e minha pele branca fazia-se gradativamente mais pálida, meus lábios ressecados mostravam-se azulados, senão arroxeados tal qual o corpo desfalecido que me tornei, e minhas olheiras profundas adjuntas do contorno das minhas maçãs do rosto que deixavam meu rosto tão profundo quanto a vala que eu estava cavando para mim mesma — a vala que eu queria cavar — as quais eu nunca tive em outrora, formavam no meu antigo rosto feliz e sadio, aquela face que eu nem me lembro mais de como era, que sabia o que era sentir saúde, disposição, alegria e o gáudio da vida, uma aparência mórbida análoga a um crânio em decomposição, feições de uma ignóbil serva da tristeza, imagem semelhança da morte que já havia dominado minha mente e que estava quase conseguindo tomar meu corpo, essa tão frágil carcaça que lutava sozinha pelas minhas próprias atitudes suicidas, foi nisso que eu me tornei: um frágil ser humano, moribundo e morrendo pelas próprias escolhas, pela própria mente submersa e prisioneira.
Tocaram-me o ombro, era o inspetor da escola, arrisco dizer que era, talvez, a única pessoa que não me fazia invisível, o único indivíduo que talvez já tenha se preocupado comigo, essa alma fraca que pelo olhar melancólico suplicava ajuda a qualquer um que pudesse, ao menos, dispor de seu precioso e egoísta tempo a dar-lhe um abraço, se é que alguém teria coragem de tocá-la, tamanho nojo e repulsa que sentem dela, "Está tudo bem?", perguntou a mim, provavelmente horrorizado com o semblante patológico e desistente da aluna que, em não tão distante outrora, era conhecida pela felicidade, conversa e pelo comportamento extrovertido, "Sim. Eu só estou um pouco cansada." menti, impossibilitada de dizer que precisava de ajuda, que estava me matando e que não suportava mais sozinha a minha mente me torturando. Meus olhos marejaram, eu não podia chorar, minhas mãos tornaram-se trêmulas, eu precisava me acalmar, não podem saber que sou uma fraca garota cujos próprios pensamentos não consegue controlar e limitar. "Você parece pálida, já sentiu isso antes?", sua sobrancelha, aliada as musculaturas da face, mostravam-me preocupação, horror e talvez, até, desespero, era realmente desesperador olhar para meu rosto por muito tempo, desesperador ver essa menina se matando lentamente, "Eu não me lembro.", na verdade eu já não me lembrava mais de nada, minha memória, meu raciocínio e minha lógica foram as primeiras coisas que perdi para essa doença que consume tudo de mim, mas se algo eu ainda recordava era de sentir-me mal, porque, até, sinto-me mal diariamente, a cada segundo, pois quase não consigo pensar com tantas dores de cabeça e tonturas, só que eu estava pensando o tempo todo, a cada segundo, sobre o quão ridícula eu sou, sobre a culpa de ser quem sou, sobre a vontade de sumir, de não estar mais aqui, emagrecer até desaparecer. "É que eu dormi mal ontem.", completei, querendo me justificar porque meu rosto de morta-viva hoje, principalmente, mostrava-me apenas morta, se colocassem-me num caixão era só velar. "Você comeu antes de vir?", sua pergunta me arrepiou, entretanto não me surpreendeu, acho que, de certo modo, todos os funcionários daqui estão suspeitando de mim, "Claro, comi bastante, como sempre." e mentir para mim era mais do que habitual, era imperioso, era necessário, eu não podia fazer das fofocas concretas, eu não podia deixar-me virar assunto, eu não podia mostrar-me fraca, ninguém poderia saber o quão doente eu estava, sinônimo de incapacidade, sinônimo de desistência, eu viraria assunto, tudo o que fazia era motivo de falarem negativos sobre mim, quem imagina o que falariam se descobrissem que sou capacho da anorexia nervosa? Carreguei meu corpo tão pesado, ainda que tão leve, pesando menos que uma criança, com os ossos da minha coluna doendo de tanto atrito com a minha fina pele, rumo a sala de aula, incapaz de pensar, aprender ou tampouco raciocinar, não conseguia, sequer, sentar-me na mesa sem sentir dores fortes, insuportáveis, nos meus ossos amostra, manchas vermelhas faziam-se presentes por toda a minha costas, minhas nádegas, quadril e costelas, a superfície dura batendo sobre meu frágil corpo, sobre meu esqueleto exposto, talvez as dores mais fortes que já senti, provavelmente as dores mais tristes que já senti. Gastava meus neurônios somando quantas calorias eu já tinha ingerido hoje, independente da aula que eu estava tendo, independente do que acontecia ao meu redor, o importante para minha cabeça, a única coisa pela qual eu poderia me focar era em como emagrecer, em como jamais engordar, decidindo quais exercícios eu deveria fazer quando chegasse em casa, em quantas vezes repetidas eu subiria e desceria as escadas do colégio, planejando minhas outras refeições para que eu não ultrapassasse as temidas calorias ínfimas que estipulei para mim por dia, menor do que um bebê precisa para sobreviver, e criando desculpas pertinentes para jejuar por horas a fio, sem que ninguém indagasse meu comportamento, sem ninguém tentasse impedir minha doença e meu desejo de manter-me doente, de matar-me aos poucos. Eu ainda não havia comido nada, menti para minha mãe que passava mal de manhã e não queria comer, mentia para minha mãe o tempo todo, criando desculpas, criando falácias e histórias que pudessem acobertar meu comportamento doentio, compulsivo e autodestrutivo, justo eu, que sempre pus minha família em primeiro lugar do pódio da minha vida, logo eu quem sempre priorizou minha mãe em detrimento de mim mesma, mentia para quem eu mais amava porque a doença que me consumia e fazia-me sua escrava era mais forte que eu, magreza extrema tornou-se a única coisa importante nos meus pensamentos. Será que eu podia dar-me o luxo de almoçar vegetais e dizer que estava sem fome para jantar? Minha única preocupação, constante, dolorida e infeliz, mas minha única preocupação.
Definhando na sala de aula, todos ao meu redor vendo-me morrer lentamente, incapazes de se preocupar. É óbvio que cada um tem sua vida, seus problemas, eu sei disso, tenho noção plena de que se vive individualmente, mas é normal acompanhar uma pessoa já abaixo do peso — haja vista que meu peso nunca esteve no IMC "normal" — emagrecer 15kg em um mês e ainda assim não comer? Eu via os olhares, eu ouvia os professores comentando, os inspetores perguntando se me alimentei, todavia os demais alunos ainda me chamavam de "normal", fulana e ciclana ainda eram mais magras e eu ainda podia emagrecer mais, aliás, olha minhas pernas, eu com certeza não vestia a mesma numeração que tal menina. Talvez eu não devesse me preocupar tanto com a opinião alheia, talvez eu fosse muito fraca, talvez eu seja muito fraca, só que é tão difícil ter que conviver com pessoas, que já me faziam mal por motivos diversos, comentar sobre meu corpo, julgar-me e me inferiorizar o tempo todo.
Nesse dia era verão, aproximadamente 40°C lá fora, o ar condicionado não dava vazão numa sala de 40 pessoas, todos suando e eu usava duas leggings sob um moletom, duas blusas de manga longa, duas de manga normal e dois moletons sobre elas, ainda assim eu tremia e via minhas unhas tornarem-se roxas porque o frio tomava posse do meu corpo, sem gordura para me aquecer, qualquer vento fazia-me congelar, definiam-me louca, doente, nem ao menos imaginavam que eu realmente estava, e cada vez tornava-me mais. Contudo esse frio exacerbado se tornou uma constante, como os cabelos caindo e ficando fracos, ressecados e sem vida, como as unhas que se quebraram todas e as enxaquecas constantes e tão fortes que me faziam chorar, orando para que parassem, tomando 3 analgésicos, implorando para que parassem. Eu suplicava: "Por favor, não liguem o ar", "você poderia deixar-me sentar aí, onde o ar não alcança?", mas é claro que eu era quem deveria me agasalhar mais, eu quem deveria buscar formas diferentes de não me incomodar com um frio que até meu corpo lutava para controlar, fazendo-me crescer pelos demasiados sobre minha pele, braços e pernas peludas a fim de tentar aquecer um corpo cujos tecidos faziam-se quase inexistentes.
Durante o intervalo era quando tudo piorava, arrastando-me pelos corredores em busca de um lugar que eu pudesse repousar minha carcaça nojenta e exausta, ninguém se sacrificava a falar comigo, entretanto todos me olhavam, cochichavam e me faziam querer apenas sumir, tornar-me apenas ossos num caixão. Ora alguém elogiava minha perda de peso, ora alguém encarava minhas pernas ou minha face abatida, ora diziam-me o quão cheinha eu ainda era e diziam-me que, se é verdade que emagreci, fazia-se imperceptível a ausência de 15 quilos e a queda de 5 pontos no Índice de Massa Corpórea, indagando-me se era verdade ou apenas crueldade esses dizeres maldosos.
Ainda nesse tenebroso dia, eu andei até a farmácia que ficava vizinha ao colégio, sozinha e fraca, acreditando que iria desmaiar na rua debaixo do sol à pino e vestida dos pés à cabeça para uma nevasca, eu tremia e suava frio, minha glicose tangenciado à diabetes de tão baixa e minha consciência se perdendo aos poucos, todavia eu precisava saber se tinha engordado, não é? Precisa ir me pesar, verificar se minhas táticas de emagrecimento subumanas e se as motivações loucas e tóxicas me ajudavam como eu ansiava. Até porque no dia anterior eu havia comido uma uva a mais e 150 abdominais talvez não tenha sido suficiente para me punir, não é? Cheguei na drogaria, com a visão escurecida e dobrada, levei-me a balança com dificuldade, envergonhada de todos os olhares enquanto retirava as inúmeras camadas de roupas e meu tênis a fim de ver o menor peso possível, o número que apareceu fez-me absurdamente nervosa, preocupada, ansiosa e deprimida, contudo, satisfez-me de maneira inigualável, foi a maior felicidade que eu já senti em toda a minha vida:
17 anos, 1,65 metros e 35kg.
Os holofotes nunca decaem sobre a plebe estilhaçada, coiotes sedentos presos no amém, almejando minha alma estripada. No profundo abissal que você me colocou, não posso emergir pois seu tapete vermelho foi tecido com minhas penas e colorido com o pigmento do meu sangue. Venerem quem me matou, do meu pranto nasceu o mais pueril rir, mártir queira-me conselho: fadada a putrefação dos preteridos na penumbra do mangue.
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Coroa de Ossos
SaggisticaCoroa de Ossos é um relato da minha luta contra a anorexia nervosa desde os meus 14 anos de idade, depois de cada capítulo tem um poema autoral sobre anorexia que eu escrevi na época em que eu passava por esses impasses. Essa versão está sem um capí...