Nem sei dessa pressa toda
Dessa gente tanta
Meios-dias feios
Desses dias chatosVagalumes Cegos - Cícero Lins
As tardes na loja do meu pai costumavam ser pacíficas, desde quando tinha me predisposto a trabalhar no caixa, há algumas semanas.
De acordo com o meu genitor, isso era normal. Havia pouca movimentação em grande parte dos dias, aumentando de forma significativa somente nos períodos de férias de final do ano e feriados em geral.
Vendiam-se todo tipo de instrumentos de pescaria e camping por ali, que viajavam por entre amontoados de varas, anzóis, barracas e demais trambolhos que as pessoas costumam usar quando vão para algum lugar que tenha muita água, peixes esquisitos para fisgar ou simplesmente seja bom de montar acampamento.
O que me ajudava a não ficar entediado a ponto de cogitar engolir um guarda-sol aberto nas horas em que estava por lá, era fazer caça-palavras. Eu tinha dezenas de revistas com essa temática, e com certeza já se tornara um vício.
Era exatamente o que eu estava executando naquela tarde, por sinal. Pressionava o grafite do lápis com diversas marcas dos meus dentes contra a página da revista, para tentar parar de pensar no que Léa tinha me dito mais cedo.
Achei que não voltaria a me lembrar disso, depois de decidir com firmeza que não tentaria me aproximar do Aart para comprovar que eram inverídicas. Porém, eu já deveria saber, depois de quase dezessete anos convivendo comigo mesmo, que não pensar demais nas coisas que me inquietavam nunca foi uma opção.
Era o que tinha me imergido naquela procrastinação latejante, que me segurava na cadeira e me impedia de organizar os novos produtos que tinham chegado nas estantes, forçando-me a continuar circulando palavras na vertical, horizontal e atravessadas.
De súbito, o eco de passos reverberando contra o piso polvilhou o ar e, dentro de um segundo, minha irmã estacionou na frente do balcão onde meus pés descansavam, enfiando os cotovelos recobertos pelo tecido jeans da jaqueta ao lado dos meus tênis.
Pelo jeito que me observou, os olhos reluzindo expectativa em meio ao delineado preto generoso que costumava usar, já consegui imaginar o que viria a seguir.
— Vou na casa de um cara, mas se a mãe ou o pai perguntarem, você diz que eu fui na casa da Ju, ouviu?
Sacudi os ombros no meu típico sinal de confirmação, que pareceu ser o combustível para os lábios de Léa exibirem um sorriso torto que perpassava malícia.
— Você deveria transar também, para ver se esse seu humor melhora. — Descontração refugiou-se nas palavras.
Ergui as sobrancelhas.
— Para de me atazanar. Não são nem quatro da tarde.
— Só tô dizendo. — Levantou os braços rapidamente, em rendição. — Desse jeito aí, vai aposentar o pau antes dos vinte por falta de uso, maninho.
— Tem noção de quantas doenças dá para pegar no sexo, mesmo com camisinha? E o número de bactérias que vão passando de um corpo pro outro, também? — entoei, na tentativa de convencer a ela e a mim mesmo que era a explicação perfeita para que eu não fizesse sexo, e não a ausência de pessoas dispostas a fazer comigo.
— Tá bom, Dr. Bactéria. Me desculpe por ousar fazer uma coisa tão suja e esquisita como essa... — brincou, afastando-se do balcão.
— Aliás, não quero nenhum tipo de detalhe, por favor. — assegurei, convicto.
— Ah, poxa... Só porque eu ia te narrar as incríveis aventuras do pau do Renato na minha caverna do dragão. — Falsa tristeza recheou as sílabas, sua mão viajando até o peito em um gesto dramático.
Arremessei a minha revista na sua direção, mas ela desviou com uma maestria impressionante e sua risada eufórica preencheu o ar logo em seguida, puxando a minha de forma involuntária.
— Você é muito idiota. — afirmei, com ar de riso.
— Não menospreze a minha broa picante desse jeito... — Fingiu indignação, baixando as vistas para o ponto referido abaixo do seu ventre. — Ele não quis chamar a gente de idiota, meu amor, não chora...
Sua fala cínica me fez rir ainda mais, impulsionando o corpo para trás sobre a cadeira até o impacto da ponta do encosto na parede cessar o movimento.
Léa pareceu escutar alguma coisa que eu não fiz, porque sua atenção se desviou para algum ponto por entre prateleiras durante um momento, até se voltar a mim novamente.
— Você tem um cliente muito especial. — Foi o que disse, antes de girar nos calcanhares e caminhar até onde minha revista tinha caído.
Ela capturou o caça-palavras e o arremessou na minha direção, lançando-me um sorriso torto assim que me viu fisgá-lo no ar para, depois, trilhar caminho até a porta de vidro e sair por ela.
Estiquei o pescoço rumo às prateleiras, na esperança de ver quem tinha chegado.
Tive a impressão de ter avistado um vislumbre de verde incomum naquele cenário, mas muito conhecido por mim. Entretanto, assim que me inclinei para o lado, tentando confirmar quem era, percebi no desequilíbrio que me engolfou que não tinha calculado muito bem o meu impulso.
O que ouvi em seguida foi o baque surdo do meu corpo contra a cerâmica do chão, acompanhado da dor lancinante que irrompeu nos meus ossos e me fez ver estrelas por um segundo, até os pontos luminescentes no teto darem lugar ao emaranhado de cachos coloridos que modelavam as feições preocupadas de Aart.
— Você está bem? — indagou, parecendo genuinamente interessado na resposta.
— Acho que quebrei a bacia.... — Foi tudo o que consegui dizer, o maxilar trincado e uma porção de lágrimas sôfregas ameaçando se formar, queimando meus olhos.
Ele observou a cadeira minúscula onde eu estava sentado há alguns instantes, apertando os cílios em análise.
— Acho que não foi uma queda tão alta a ponto de te fazer ganhar uma fratura... — Divertimento embalou seu timbre.
— Não importa, tá doendo, e dor pode significar que eu vou morrer em breve. Chama uma ambulância!
Aart deixou um riso escapar, os olhos se estreitando em meio ao esticar dos seus lábios.
Por um momento, da forma mais estranha possível, todos os outros sons do mundo pareceram ser feitos de estática, e somente aquele era claro o suficiente para ser ouvido.
Engoli em seco, percebendo que estava prendendo a respiração e não conseguia lembrar de como puxar o ar.
— Você é sempre tão... dramático assim? — questionou o garoto, o pequeno sorriso fechado que riscava seu rosto denunciando o embaraço de entoar as palavras.
Pude ver sua mão se estender na minha direção, e, só então, percebi o papel ridículo a que estava me prestando. Na presença de Aart Duarte, para piorar tudo.
Não respondi à pergunta, porque a única coisa que queria naquele momento era conseguir compactar meu corpo para me enfiar dentro do caixa registrador e ficar longe do seu olhar que, repentinamente, pareceu queimar minha pele.
Em um ímpeto movido pelo constrangimento fumegante que se alastrou pelo meu sistema, tomei seus dedos por entre os meus, aceitando a ajuda para levantar.
Péssima ideia.
Se as orbes castanhas de Aart estavam sendo capazes de esquentar minhas células, sua pele contra a minha pareceu alastrar uma torrente de fervor sob as digitais, que ameaçou derreter as paredes das minhas veias com o sangue em ebulição súbita que corria dentro delas.
Seus lábios se partiram em um movimento sutil assim que me pus de pé na sua frente, evidenciando a pouca diferença de altura entre nós.
Minha atenção escorregou, sem perceber, até o seu pescoço, trilhando o caminho dos minúsculos sinais que pintavam a pele clara, irradiando até a maçã do rosto.
Lembro-me que, na primeira e única vez que tivemos uma conversa normal, no início das aulas no nono ano, eu pensei em como as pintas pareciam estrelas enfeitando o céu da sua pele.
Acabei falando isso em voz alta, e fiquei com tanta vergonha do comentário estranho que fugi na primeira oportunidade que tive, sentindo vontade de me enterrar vivo debaixo de um aterro sanitário.
Ele tentou voltar a conversar comigo durante os dias que se seguiram, mas comecei a fugir das formas mais sutis que pude, constrangido demais para encarar seus olhos, por um motivo que sequer sabia ao certo qual era.
Outro fator positivo do incidente da gangorra, foi o fato de Aart não ter mais procurado tanto contato depois dele.
Naquele momento, frente a frente com ele no meio da loja, percebi que estava sentindo um emaranhado de sensações desconcertantes muito parecidas com as que acometeram meu sistema há dois anos, enquanto observava a versão mais jovem do garoto se lambuzar de um jeito estranhamente adorável com um pedaço do meu sanduíche, que todo mundo dizia ser intragável, mas ele não achou.
Depois de alguns segundos com as íris ardendo contra meu rosto, vi o exato momento em que seu pomo-de-Adão deslizou para cima e voltou ao ponto de origem após engolir a saliva, em um movimento quase hipnótico.
Quando me dei conta que sua mão ainda estava contra a minha, desfiz o contato e levei as digitais até a lateral da minha calça, secando o suor que tinha se empoçado por entre elas.
Aart pareceu despertar de um transe.
— Eu não sabia que você... que você... trabalhava aqui. — murmurou, as palavras trêmulas. — Quer dizer, eu sabia que você trabalhava em algum lugar, mas não sabia que era aqui, e mesmo se desconfiasse, eu não viria aqui só pra comprovar isso, não... Eu vim porque no final de semana eu vou para um lugar tipo um rio, ou um lago, eu não sei ainda, mas meu pai pesca por lá, aí ele percebeu que o anzol dele estava ferrado e me pediu para vim aqui comprar outro... — O fluxo de palavras cessou subitamente, seus olhos se arregalando tanto que pareceram prestes a sair das órbitas.
Seu embaraço cômico fez meus lábios se curvarem em um sorriso involuntário que pareceu pegá-lo de surpresa, porque sua cor embranqueceu ao nível de um daqueles fantasmas de lençol que só conseguem assustar crianças.
— Tudo bem. Já achou o que está procurando? — indaguei.
— Eu... achei, sim. Achei. — Deu uma ênfase nervosa, as íris fixas nas minhas.
Levantei a sobrancelha assim que constatei que suas mãos estavam vazias.
— Cadê?
— Eu meio que... perdi. — confessou, baixo, levando os dedos à nuca.
— O quê? Como? — As palavras saíram incrédulas.
— Tipo, eu meio que tropecei em uma caixa e acabei soltando ele, daí escorregou para debaixo de uma das prateleiras, eu acho, mas eu juro que não quebrei nada que estava na caixa. — frisou. — Quer dizer, que tipo de idiota deixa uma caixa daquele tamanho no meio do corredor? — A pergunta foi inocente, mas saber que o idiota referido era eu me fez encolher ligeiramente os ombros.
— Não faço ideia. Mas... Você pode ir lá escolher outro anzol. — desconversei.
Seus dentes fisgaram lábio inferior em um movimento rápido.
— Acho melhor pegar uma caixa inteira. Sei lá, para... prevenir. — analisou.
— É. Acho... bom.
Ele assentiu rapidamente para, logo em seguida, caminhar a passos rápidos até as prateleiras, quase escorregando sobre os tênis no caminho.
Não consegui conter um riso baixo diante da sua falta de jeito.
Talvez Aart Duarte não seja tão detestável assim.
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Eu Definitivamente Não Deveria Estar Aqui com Você | ⚣
Teen FictionValentim Garcia jura por tudo o que é mais sagrado que o seu ódio por Aart Duarte é genuíno. Ele detesta tudo o que envolve o garoto, dos cabelos tingidos de verde-vômito à ponta dos tênis desbotados que sempre usa. Ou, ao menos, pensa que sim. Po...