Capítulo 02

229 36 192
                                    

Brumadinho não é exatamente o tipo de cidade que desperta uma vibração mística. Na real, tudo por aqui parece bem comum. Quando você pensa em lugares com energia sobrenatural, não imagina o interior de Minas, mas talvez uma cidadezinha isolada nos Estados Unidos, com moradores que ainda contam histórias de duendes e lendas assustadoras. A gente costuma achar que magia e mistério pertencem a lugares distantes. Talvez seja por isso que acabamos não notando a energia daqui — isso se ela ainda existe.

Às vezes, tenho a sensação de que a magia sumiu ou se escondeu.

Esses pensamentos surgiram depois que meu avô comentou sobre o sumiço das meias na máquina de lavar. Ele estava convencido de que eram os duendes. Eu ri, achando que ele só tinha esquecido de colocá-las lá, mas ele parecia sério, o que só deixou tudo mais engraçado.

— E você acredita que são duendes? — brinquei, rindo.

— Eu tentei negociar com eles, mas esses capetinhas adoram me atormentar — ele resmungou.

O Tenente Sílvio, ou Sr. Sil, como os vizinhos o chamam, é o meu avô. Aposentado, ele foi militar desde os 26 anos e é o tipo de cara que ganhou respeito sem precisar levantar a voz. Hoje, ele passa os dias no escritório, entre livros antigos, falando sobre magia e mistérios como se fossem fatos.

Pergunte qualquer coisa sobre religião, lendas ou coisas sobrenaturais, e ele te dará uma verdadeira aula. Ele diz que, para ver a magia, eu tenho que parar de procurar por ela.

No fundo, sei que ele sabe que sou cético, mas talvez ele tenha uma pontinha de esperança de que eu um dia veja o mundo como ele vê.

Só que de um tempo para cá, as coisas andam meio estranhas. Eu faço vinte anos e, de repente, tenho sonhos — ou melhor, pesadelos — recorrentes que me deixam com uma sensação ruim. Sempre acordo com o coração disparado, uma sensação sufocante na garganta e a certeza de que tem algo nesses sonhos que não estou entendendo.

☙☙☙

— Espera aí, deixa eu ver se entendi. — João gesticulou como quem não acreditava. — Você tá sonhando com uma garota que nem existe, e acha que tá apaixonado por ela? — Ele levantou a sobrancelha, me zoando.

— Cara, ela é real para mim. — A frustração já estava subindo. — Não é só um sonho. É como se eu a conhecesse de verdade. E o pior é que sei que algo ruim acontece com ela nos sonhos, mas nunca consigo lembrar.

João, meu melhor amigo, sempre bancou o psicólogo. E, apesar de ser bem agitado e tagarela, ele leva jeito.

— Quem sabe isso não seja seu subconsciente tentando te dizer algo? Algum trauma mal resolvido, talvez? — Ele coçou a nuca, num gesto clássico de quando ele está falando sério.

João sempre relaciona tudo com a morte dos meus pais. Ele acha que todo problema meu vem disso, mas, sinceramente, eu nem lembro deles. Eles morreram quando eu era muito pequeno, então só conheço o que o meu avô conta. Claro que eu preferia que eles estivessem aqui, mas o sr. Sil sempre cuidou de mim como pai e mãe, então nunca senti que faltava algo.

O sinal tocou, tirando-me dos meus pensamentos. Na faculdade, tudo seguia a mesma rotina. Anotações, fórmulas de Engenharia Química para decorar, e a eterna batalha para passar nas provas. Gosto do curso, mas às vezes a pressão de seguir um caminho que nem sei se é meu pesa mais que o conteúdo.

No meio do corredor, vi Evelin encostada na parede, com o nariz enfiado num livro. Ela era dessas que te surpreendem, com aquele jeitinho tímido que esconde uma personalidade cheia de inteligência e ironia.

— Oi — falei, sorrindo. Ela levantou o olhar e pareceu surpresa.

— Ah, oi! Dormiu melhor? — Ela me perguntou, abraçando o livro contra o peito.

— Dormir eu dormi. Mas sonhei, como sempre. E aí, o que você está lendo? — tentei mudar de assunto.

— Um romance de época. A rainha quer que a princesa se case com um príncipe, mas ela se apaixona pelo plebeu da cozinha. Eles fogem juntos... — Evelin riu, parando de falar abruptamente. — Foi mal, eu falo demais dessas coisas.

— E eu gosto de te ouvir falar dessas coisas — respondi sem pensar muito. — Você sempre consegue deixar qualquer coisa interessante. Ela corou, e eu vi seus olhos brilharem. Evelin tem esse jeito de transformar qualquer coisa banal em algo interessante.

— Arthur Thyrd, você não existe! — Ela disse, rindo e mexendo no meu cabelo.

Nos encaramos por um segundo, e antes que eu percebesse, nossos lábios se encontraram num beijo rápido. Quando ela se afastou, sorriu e saiu andando pelo corredor, sumindo da minha vista. Fiquei parado, ainda meio atordoado.

— Cara... a Eve realmente fez um estrago em você, hein? — João apareceu do nada, me assustando e tirando um sarro.

— Cala a boca, JP — resmunguei, tentando segurar o sorriso.

A Evelin é um alívio para mim nesse momento conturbado. Eu gosto dela, e somos bons amigos, mas é estranho sentir que estou dividido entre ela, real e aqui comigo, e uma garota que só aparece nos meus sonhos. Quem diria que eu teria que escolher entre uma garota de verdade e uma da minha imaginação?

☙☙☙

No estacionamento, subi na minha moto. O ronco da minha Dafra Horizon 150 era como música pros meus ouvidos, um escape. Não é uma moto de luxo, mas me dá a liberdade de que preciso. Enquanto acelerava, sentia o vento no rosto e o peso dos pensamentos diminuindo. Era a única coisa que me deixava realmente livre — livre do peso dos sonhos, das dúvidas e das escolhas que não sei se estou pronto para fazer.

A ProfeciaOnde histórias criam vida. Descubra agora