Invasores

Ceres

– Sejam bem vindos exploradores! – o vídeo de recepção começou a passar as instruções nas telas da nave.

Bati com os dedos na tela na minha frente, não tinha opção para diminuir o som, nem mesmo a função básica para desligar essa porcaria.

Milhões gastos em um projeto mal planejado – uma nave linda com mais de dois mil passageiros e contendo apenas 2 banheiros – e aquela gritaria diárias nas telas. Não era de se admirar que depois de um mês a opção de apagar por 50 anos era a mais pedida pelos passageiros, todos imploravam pelas câmaras, mas nem todos conseguiram passar um dia no primeiro estágio de semiconsciência.

Rondas diárias eram necessárias para manter os tripulantes estáveis, depois uma vez por semana era o suficiente.

Hoje a minha equipe foi escolhida para gerir o processo de reanimação, estávamos próximos de Ceres – três gerações nasceram e morreram no caminho, os mais ousados estão apagados desde o primeiro mês, começaremos por eles.

Todos continuam com as células paradas, como se o tempo fosse desligado, um congelamento quase total não recomendado pela base de comando por tanto tempo, mas algumas regras podem ser questionadas. Pelo menos é isso que consta no meu programa.

*

– Julieta – paciente 01, os mais antigos foram os primeiros a despertar – Preciso que converse comigo para começar a avaliação de capacidades.

A garota devia ter 13 anos, olhos vermelhos, funções motoras respondendo aos estímulos, mas quando tentou falar não emitiu nenhum som. Tentei estímulos diretos nas cordas vocais e na garganta, sem sucesso, uma para a lista de defeitos.

Passamos pelos 150 loucos e nenhum manteve as condições saudáveis da chegada, 45 não sobreviveram pelas primeiras 24 horas de consciência.

Começamos a planejar cirurgias e reabilitação, faltando um mês para a chegada encontramos um problema no Sr. Almeida.

– Mas vocês disseram que tudo foi perfeito! – ele gritava sem parar

Uma pequena célula cerebral infeccionada não foi detectada nos exames de admissão da viagem, e nem mesmo durante o período na câmara, ela se tornou algo bem maior, se tivéssemos detectado antes, algumas pílulas resolveriam o problema completamente.

– Precisamos fazer uma cirurgia de limpeza, um procedimento rápido e com poucos riscos, mas não possuímos estoques do seu tipo sanguíneo, nenhum dos 5 sobreviventes que fizeram o descanso na mesma época são compatíveis.

Ele tremeu na cama acolchoada.

– Deixei minha família morrendo na Terra, e você quer que eu morra no caminho – ele cuspiu no chão – Seu pedaço eletrônico inútil sabe quem eu sou? Faça pedacinho de um dos presuntos que ficaram congelados comigo, mas não ouse me deixar morrer como um pobre comum!

Ele gritou até começar a tossir, aguardei com a equipe a crise parar, fomos feitos para não associar ódio e comportamentos violentos, mas senti certo agrado em ouvir as últimas palavras dele.

– Aqui senhor tratamos todos os passageiros igualmente, nenhum poder da sua antiga vida cabe aqui – prosseguiu enquanto entregavam água para ele – Humanos que não estejam aptos para habitar Ceres serão colocados na lista de análise.

Pude ouvir os gritos dele ecoaram por toda a nave, mesmo depois da consulta, nenhum dos passageiros pareceu notar o som.

*

A avaliação final foi feita sete dias antes da chegada em Ceres, os humanos precisavam estar estáveis física e psicologicamente. Os níveis de euforia estavam muito altos, mas encontramos na maioria deles boas condições.

Algumas horas antes do pouso separamos os humanos para a pilha de descarte, uma cápsula de sono era ministrada para nenhum deles sentir a cabine de incineração. Tinha me esquecido que o Sr. Almeida precisaria de três cápsulas, níveis químicos alterados poderiam fazer com que uma cápsula não funcionasse sozinha.

Encarei o terror nos seus olhos quando percebeu as portas se fechando. Um erro como esse era comum, afinal eu era um pedaço eletrônico inútil.