Kiara

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Lumo estava baixo, quase na altura do horizonte, e Kiara estava no teto da mercearia do Juca Balão. Nesse cair da noite ela estava inusitadamente distraída, com os pensamentos nas nuvens. Bom, é compreensível, já que ela estava em sua décima primavera e esse seria, se tudo desse certo, seu último dia como integrante da Trumbique. Tudo bem que ela já estava doida para entrar num dos grupos dos "maiores", como eles costumavam chamar, desde que Gurundi graduou do grupo "dos pivetes" – Kiara estava tentando se acostumar a chamá-los assim, mesmo que ela ainda fosse um.

Artemis estabeleceu um teste de lealdade e obediência, rito tradicional da Falange. Kiara não tinha nenhuma dificuldade em particular com lealdade, mas, se a situação fosse outra, ela poderia se dar ao luxo de mandar pastar a todos os "cupinchas" e sua obediência burra Kiara nutria um desgosto tão natural e espontâneo pela Falange que ela os chamava da mesma forma que a molecada, pelo menos em seus pensamentos, já que não poderia mais chamá-los assim quando se tornasse um deles.

Pode parecer, mas na verdade não tem nada de estranho ou contraditório nas ações dela. Você só precisa entender um pouco mais a fundo a situação. A questão é que Kiara era uma grande admiradora de Gurundi, um guri que ela julgava sobremaneira sagaz e finório – "um verdadeiro velhaco" a seus olhos. Era alguém que ela admirava muito e se espelhava. Acontece que Gurundi não entrou para a Falange, ele entrou para a Molecada. Os "moleques", como os cupinchas os chamavam – sim, eles não são conhecidos por terem um elevado nível de criatividade – era o outro grupo das crianças maiores.

Então, como pode perceber, Kiara não tinha escolha, entrar para a Falange era a única opção lógica e ponto final.

...

O quê? Não está enxergando lógica nisso?

Pois bem, na cabeça da Kiara, a melhor forma de conhecer os meandros do pensamento de Gurundi, e chegar em seu nível o mais rápido possível, era se tornando sua implacável adversária. E ela não tinha muito tempo, Gurundi completou 14 primaveras recentemente e com 15 é que as crianças da vila costumavam assumir em tempo integral responsabilidades de uma vida adulta.

A luz do dia já quase não se mostrava mais. Kiara, com sua vista privilegiada do telhado, conseguia não apenas observar as suas vulneráveis vítimas, como também ver boa parte da vila. E que bela paisagem se mostrou naquela noite. Não era pra menos, era noite de Lua cheia e sua luz acolhedora e levemente azul-esverdeada – dependendo de quem você perguntar – coloria sombras onde a luz serelepe e alaranjada das tochas e fogueiras não batiam.

A vila era bastante arborizada – não é para menos, uma vez que ficava escondida no meio da "Floresta da Sangruia". As casas e lojas costumam ficar espalhadas e entremeadas por árvores. No entanto, de sua posição, Kiara se distraia nesse momento com as luzes das casas mais distantes, que pareciam cintilar e dançar no ritmo o balançar das copas das árvores.

Essa noite era dia de bródio, o tradicional bródio de comemoração do Dia da Lua Calada. Nesse dia as pessoas da vila juntavam esforços no preparo dessa tão esperada festividade. Apesar de não ter muita decoração, basicamente tochas de fogueiras, a comida era farta. Tinha para todos os gostos, mas certamente uma das mais esperadas era a "panelada da Gioconda", como a criançada chamava. Gioconda era a dona da Quitanda, a única e muito movimentada quitanda da vila. Antoniella, sua assistente, finalmente apareceu carregando uma enorme e pesada panela em direção à grande mesa de madeira que foi colocada no centro da "praça" – apesar de que não era uma praça em si, apenas um grande círculo aberto, e pavimentado com pequenas pedrinhas, que marcava o centro da cidade.

Essa era a deixa, Kiara desceu se pendurando na plaqueta da fachada da loja e pulou, amortecendo a queda com uma cambalhota. Se levantou e se fez de ocupada, espanando a poeira do vestido, enquanto observava de canto de olho se todos por ali tinham testemunhado sua chegada. Sentiu uma pontada de decepção quando apenas a Mariquinha e a Margarida – é, seus pais eram daqueles que colocam o nome dos filhos todos começando sempre com a mesma letra – a olhavam, apontavam o dedo em sua direção e cochichavam alguma coisa.

Tudo bem, ela tinha mais na sua cabeça com o que se preocupar dessa vez.

De olho nos arredores e observando a movimentação, Kiara viu que estava todo mundo atarefado demais para se preocupar com o que uma menininha como ela estaria fazendo. "Huuuufssss" – ela não conseguiu conter um suspiro de tédio. Aquilo seria "fácil demais". Ela foi caminhando, como quem não quer nada, em direção à mesa, enquanto retirava um pequeno frasco de cor esbranquiçada de um dos bolsos. Chegou no caldeirão do ensopado, afastou um pouco a tampa para sentir o aroma. "Delicioso!" – ela sempre comia mais ensopado do que devia nos dias de bródio. Salivando com aquele cheiro gostoso, se certificou de que ninguém realmente estava atento ao que ela fazia. "Tudo certo, ninguém." Fez que estava observando outras coisas à mesa e, enquanto alcançava a tampa da panela, derramou o conteúdo do frasco no ensopado. Terminou de tampar a panela, guardou o frasco vazio, deu meia volta e partiu assobiando em direção à sua casa.

"Ah, não!" – pensou quando se lembou que se esqueceu de levar um pouco do ensopado para ela. Mas não era só isso que a perturbava. O que tinha no frasco era extrato de paumerânea. "Diz que é bom pra acabar com vermes também, não é só um laxante" – assim justificou consigo mesma as suas ações. "Então tudo bem, né?!!"

Kiara gostava de pregar peça nos outros, fazia pela gargalhada. Não acertava sempre, mas gostava muito quando acontecia do seu alvo rir também. Fazer o mal feito, pelo mal feito, não era muito o seu estilo, mas esse parecia ser o modus operandi da Falange. Talvez por isso ela não fosse com a cara deles.

Talvez não, né Kiara?! Certamente esse era um fator chave.

Três dias depois, e após todos da vila retornarem à frequência normal de visitas ao "troninho", Kiara foi condecorada. Kiara agora era mais uma cupincha.

Parabéns, Kiara! ... Eu suponho.

Quase dois ciclo depois, Kiara já havia subido muito nos rankings da Falange. Estava cada vez mais tomando posições de liderança e muitos já cotavam ela como a próxima líder do grupo, só que algo que ela não esperava aconteceu. Algo sem precedente e que viraria de ponta cabeça a dinâmica dos grupos e sua posição dentre as crianças da vila.

As "Disputas Corriqueiras Razoavelmente Amigáveis, Só Que Não", também conhecidas como RATAZANA – não me pergunte o por quê – já tinham começado dois dias antes, quando Kiara testemunhou tamanha mesquinhez de seu cupincha, a mando do chefinho, contra uma menina estabanada e serelepe que estava querendo fazer os testes para entrar no grupo.

Essa menina Kiara conhecia bem e ia muito com a cara dela, apesar de ser dois ciclos mais nova, desde os tempos da Trumbique. Era uma pivete muito agitada, distraída e curiosa que, por algum motivo, sempre cativava as pessoas ao seu redor.

O nome dessa pivete era Zola.

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