Um Dia Na Vila

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 Mais uma vez Lumo dava sinal de sua chegada, jogando sua luz por trás da cordilheira. Na pequena vila Rejo, ainda escura, já não era mais tão fácil enxergar as estrelas. O aroma das flores de lir já tomava conta dos campos e começava a adentrar as partes mais populosas. As craticunas já não cantavam mais e as aleluias começavam a movimentação para a sua revoada matinal.

Saul e Samanta, sua interna naquele quarto-lunar, retornavam do pomar com balaios cheios de antagônias. Antagônias eram umas frutas um tanto esquisitas. Eram porosas e repletas de um caldo adocicado e levemente espeço, o tal leite. Depois de espremidas, deixavam um bagaço flácido e esponjoso. O cheiro era um pouco acre e o sabor levemente acastanhado, eu diria até que castanho escuro. Falo do sabor, não da cor. Mas divago.

Eles tinham que ser ligeiros, antes que as aleluias os alcançassem. A carroça já estava carregada e essa era a última leva. Mamungos, os animais usados para puxar carroças e transportar carga, eram muito vulneráveis aos "ataques" das pestinhas cosquinhentas. Na semana anterior mesmo, foi perdido quase um quinto do carregamento do leite já espremido quando as danadas os cercaram. Agoniados, saíram em disparada, levando muitos galões ao chão.

Os corações de Samanta e Saul pularam uma batida quando começaram a ouvir o coaxar das aleluias ecoando da floresta. Eles não tinham mais muito tempo. As sementes de pés-de-meia que conseguiram com a Nádila depois do ocorrido ainda não tinham brotado. A ideia era enfeitar os Mamungos com guirlandas da planta na esperança de afastar o perigo iminente. Mas agora isso não era opção. Os pequenos lagartos voadores só coaxavam momentos antes de sair em revoada, e nesse momento já não o faziam mais. O que dava muito pouco tempo para os dois chegarem até a carroça e defender o carregamento e seus animais com as próprias guirlandas, já ressequidas, que carregavam no pescoço.

Apertaram o passo. Já estavam muito próximos quando Samanta "Ah! Já tem uma no Teodoro". Apenas uma, depois outra, uma terceira e... várias já se penduravam em seus pelos. Teodoro relinchou, empinou, levando ao ar as quatro patas da frente, seu corpo apenas ficou apoiado no rabo e nas duas patas traseiras. 4 galões de leite foram ao chão por conta disso. Saul, suando quente e frio ao mesmo tempo, chegou ofegante, deixando o balaio que carregava no chão, tirou sua guirlanda do pescoço e começou a sacudir, perto do animal. Samanta simplesmente jogou o balaio de qualquer jeito para um lado, derrubando todo o seu conteúdo, e foi acalmar o bicho.

Ufa! Dessa vez conseguiram antes de maiores estragos.

Aleluias são assim, chegam rápido mas também não estendem muito sua visita. Apesar do que perderam, conseguiriam cumprir com as entregas do dia.

Com o devido recebimento do leite, a padaria da vila já estava a todo vapor. Sério, o aroma do leite de antagônia fervido dava para sentir a umas quatro casas distantes. Marcel, o padeiro da vila e pai de Adriel e de Elaine, já havia alimentado os fornos com bastante lenha e começava a enrolar os pãezinhos. Naim, que era sua aprendiz nesse quarto-crescente (segunda estação lunar do ciclo), estava responsável por botar as mesas. Ela não percebeu, mas um enxame de hmquidores estava se assentando num dos galhos da árvore ao centro do pátio de alimentação. E, por azar, esses eram daqueles de quatro ferrões, ao contrário dos mais comuns. O espaço era compartilhado entre a padaria e a quitanda da Gioconda. Mas nesse horário tão cedo, o movimento era mais de quem estava saindo para trabalhar e só queria comer um pãozinho com antagônia antes de começar o serviço.

Para o desespero de Naim, a clientela começou a chegar e ainda faltava quase a metade das mesas para arrumar. Ela se apressou e começou a servir as mesas um pouco mais ligeiro do que de fato dava conta. Por conta disso, toalhas ficaram tortas, faltaram talheres aqui, sobraram facas ali, alguns foram ao chão e tiveram que ser trocados. Mas foi um alívio ver o pátio cheio. Isto era algo que ela gostava muito, atender os pedidos das pessoas e vê-las saindo felizes e de pança cheia.

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