Crônica ㅡ Será que eu errei?

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     ㅡ Pois então pegue, é tudo seu!
     Ouve esta exclamação? Esta foi a última faísca de voz que ouvi de Carla. Ela deu-me o quanto devia, mas, em compensação injusta, tirou a sua própria vida.
     Para ser sincero, não consegui, até os dias de hoje, descobrir porquê ela fez aquilo. Talvez fosse a tristeza, a mágoa, o ódio, a rebeldia, talvez. . .
     Ela foi uma irmã, não só de sangue, mas de espírito, de alma. Nós nos entendíamos bem, melhor do que irmãos comuns; algo secreto nos unia.

     Há ainda lembranças daquele dia. Um daqueles delinquentes mexeu com a minha irmã! Ela é da mesma idade que eu, alguns segundos mais nova, e, por causa destes míseros segundos, tenho de defendê-la, como um irmão mais velho!
     ㅡ Ah! Então essa menininha é a sua irmã? ㅡ disse o delinquente, depois que empurrei-o para longe de Carla.
     ㅡ Isso mesmo! Para de mexer com ela! ㅡ gritei, indo à frente de minha irmã.
     Não consegui. Ele era mais alto que eu, mais forte que eu, mais tudo que eu. Aquilo só me rendeu um olho roxo, e nada mais. Portanto, minha irmã estava salva, isso já era um grande alívio.
     Depois deste dia, Carla me via com admiração, como se eu fosse uma meta a ser alcançar. Em outras ocasiões, ela me via como herói, o seu próprio herói.
     ㅡ O super-irmão! ㅡ exclamava.

     Alguns anos depois, porém, nós crescemos, e, junto com nossas infâncias, as brincadeiras se foram, os jogos evaporaram, e, principalmente, aquele amor de irmãos, que foi esquecido no ar.
     Nos olhávamos sérios, sem dizer nada, paravamos no corredor, e, segundos depois, continuavamos andando, como se nada tivesse acontecido, como se estivessemos sozinhos.
     Mas, algo que não foi embora, foi aquele olhar; aquele olhar de admiração. Ele ainda pulsava nos olhos de Carla. Eu o sentia às vezes, olhava, procurava por ele a todos os cantos, mas não, já havia ido embora.

     Certa noite, Carla gritou pelo meu nome do quarto dela. Segui até lá, confuso e curioso.

     ㅡ Lembra daquele dia na escola? ㅡ perguntou ela, após eu me sentar ao seu lado na cama.
     ㅡ Qual dia? ㅡ perguntei, tentando não manter contato visual, coisa que minha irmã também fez.
     ㅡ Que você me. . . Defendeu, sabe? ㅡ disse ela, tímida.
     ㅡ Sim. Eu lembro ㅡ falei, dando um sorriso tênue àquela boa lembrança.
     ㅡ Acho que te devo algo ㅡ afirmou a minha irmã, tirando um pacote da sua bolsa. E, após tirá-lo por completo: ㅡ Pois então pegue, é tudo seu! ㅡ exclamou ela, estendo-me o tal pacote.
     Peguei o retângulo embrulhado, confuso e assustado. Levei a mão ao laço no centro do pacote, mas antes que pudesse fazer algo, minha irmã impediu-me.
     ㅡ Espere. . . Abra depois.
     Não insisti, segui para fora do quarto (ordem de Carla), e resisti à tentação de abrir o pacote. A promessa foi dada; só poderia eu abrir o pacote amanhã.

     No dia seguinte, logo de manhã, pulei da cama e fui rapidamente ao pacote, abri-o, curioso. Já aberto, o pacote revelou uma carta e um colar dentro de si. Quando vi, reconheci o colar; era o preferido de minha irmã.  A carta, todavia, teve de ser aberta. Eis aqui as mesmas palavras do papel:

     " Querido irmão, percebi a tempos que nós temos nos afastado. Passei muitas noites pensando nisso. Fiz e refiz a pergunta: ' Será que eu errei? '. Mas não obtive resposta em lugar algum. Posso te dizer uma coisa, mano? Não sei se percebeu, mas, se não, quero que saiba que sempre olhei você com muita admiração. Você era como uma meta para mim; uma inspiração. Você era incrível! E eu, bom, não era nada. Os elogios foram a você, os abraços foram a você, tudo foi a você. Mas nada para mim. Talvez eu seja só uma versão defeituosa de você, meu querido irmão. E os defeitos nunca ficam. . . "

     Aquelas letras, tão profundas letras, elas me disseram tudo, toda a verdade por trás daqueles olhares admirados. Eu já sabia o que ela havia feito. Caí em lágrimas. Será que eu errei, minha querida irmã?

Contos Diversos - Vol 1Onde histórias criam vida. Descubra agora