Castigo/Fim de caso

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São Paulo, 04/11/1987. Quarta feira.

Não havia sido uma noite fácil e para falar a verdade os últimos meses estavam sendo insuportáveis na companhia um do outro. A relação que havia se iniciado como o nascer de uma borboleta que aproveita para voar livremente enquanto vive apenas vinte e quatro horas estava finalmente morrendo, e o voo, que era o relacionamento daqueles dois, havia durado bem mais de vinte e quatro horas. Havia durado quinze anos.

Aquele casamento havia transitado por nuances de céu e inferno que nenhum purgatório poderia colocar defeito, tudo ali havia sido equilibrado até demais. Na época, a paixão inflamava entre os corpos de maneira tão intensa que qualquer um que convivesse com o casal diria com todas as palavras que Antônio Fagundes e Clarisse Abujamra tinham nascido um para o outro e por algum tempo eles tiveram a certeza disso. Mas como tudo nessa vida tem um fim, o casamento dos dois não era diferente.

Aquela noite havia sido especialmente tenebrosa, Clarisse e Antônio foram juntos a um jantar na casa de um amigo que passava uma temporada em São Paulo e na volta para o apartamento que dividiam com os filhos, uma nova discussão se iniciou. E na verdade não era preciso fazer muito esforço para qualquer discussão se iniciar, apenas o respirar mais denso que um dava era motivo para que o outro mandasse o último resquício de paciência para o espaço e iniciasse uma nova discussão.

Quando chegaram em casa, Antônio foi direto preparar uma bebida enquanto Clarisse foi velar o sono dos filhos que já dormiam serenamente, Dinah e Diana dividiam um quarto e Neto dormia sozinho em outro. Aquelas crianças eram as coisas mais bonitas que aquela pobre mulher tinha e faria de tudo para não perdê-las.

Deixou também lágrimas silenciosas deslizarem por sua face. Eram lágrimas de dor e tristeza, eram lágrimas frustradas por saber que não conseguiria arrastar um casamento falido apenas para fazer as crianças sorrirem, não era certo para ela, para os filhos e nem para o homem que ainda atendia pela alcunha de seu esposo. Clarisse então fechou a porta dos quartos dos filhos, entrou no que dividia com Antônio que foi direto para a suíte tomar um longo banho.

Fagundes, assim que ouviu o barulho do chuveiro, entrou no cômodo desabotoando os três primeiros botões da blusa que usava e se sentou em uma poltrona próxima da cama e fumava seu cigarro enquanto olhava a bebida em seu copo tentando achar uma saída para aquela situação. Também estava cansado. Ele estava exausto e não sabia como ainda tinha forças para se manter de pé. Nos minutos em que permaneceu sozinho naquele quarto, os quinze anos ao lado de Clarisse passaram como uma flecha por sua cabeça, agora tudo parecia tão longínquo, tão pequeno e ele se perguntou onde estava toda a paixão que moveu seu caminhar ao lado daquela mulher.

Depois de um certo tempo, o quarto estava a meia luz e sequer poderia ser ouvido algo além do gelo que balançava dentro do copo, do fogo que queimava o cigarro e o respirar das duas pessoas que ali estavam. Ela estava sentada na cama, a postura ereta não condizia com a vermelhidão na face que trazia à tona as lágrimas de tristeza que por ali haviam passado. Ele, por sua vez, também não estava nos seus melhores dias e vez ou outra passava os dedos nos olhos tentando em vão dispersar as lágrimas que caíam mesmo que ele não quisesse.

Eles não queriam dar o braço a torcer de jeito algum.

— Nós vamos fingir que não estamos passando por essa crise? – Clarisse deslizou as mãos pelas pernas que estavam esticadas na cama. — Nós vamos agora posar de casal feliz para todo mundo lá fora enquanto não conseguimos nem deitar na mesma cama? – cruzou os braços, descansou a cabeça na cabeceira da cama e inclinou o olhar para o homem sentado na outra ponta do quarto.

— Eu nunca disse isso, nunca cogitei que passássemos por esse martírio, Clarisse. – Antônio bebeu um pouco da bebida do copo ignorando a leve ardência em sua garganta. — Jamais eu faria qualquer coisa que pudesse fazer você mais triste ou meus filhos infelizes. Eu não quero isso para você, eu não quero isso para Dinah, Neto e Diana. Eu não quero isso para mim, Clarisse. – colocou o copo na pequena mesa que ficava ao lado da poltrona, apoiou os cotovelos na perna e passou as mãos no cabelos levemente grisalhos. — Porra, isso tudo é tão fodido.

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