A Paixão e a Jura

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O trabalho de todo elenco finalmente havia começado a dar resultados com as chamadas da novela indo finalmente ao ar. O esqueleto de Vale Tudo ganhava veias, músculos e pele para no fim abrir os olhos e ganhar vida nos televisores de cada telespectador do Brasil. As chamadas com os nomes de Sorrah, Fagundes, Regina, Glória, Ricceli e Reginaldo brilhavam e instigavam o público a sentarem-se de frente a seus televisores no próximo dezesseis de maio para assistirem a nova novela de Gilberto, Aguinaldo e Leonor.


Todos trabalhavam a todo o vapor dentro dos estúdios, que devido a movimentação excessiva por conta da curiosidade alheia, ficava mais e mais intensa. A pedido dos diretores a ordem passou a ser que nenhum que não fosse por eles autorizados pudessem entrar no set onde ocorriam as gravações da novela o que causou em uma grande comoção por parte dos demais e uma paz gigante vinda de todo o elenco.



Rio de Janeiro, 07/05/1988. Sábado.




— Ei, acorda, o café está na mesa.



Não passava muito das nove da manhã quando Del Rangel entrou no quarto já vestido e se sentou na cama. Por um milagre das agendas o casal estava de folga naquele dia, mas já tinham assinado compromissos que não podiam ser adiados. Ele, que já sabia que a esposa já tinha despertado, se aproximou e descansou o queixo em seu ventre.



— Eu não quero levantar. - a atriz resmungou.


— Você quem pediu para te levantar antes de sair.


— Eu sei. - levantou o tapa olho até a testa e alisou os cabelos do marido. — Bom dia.


— Bom dia. - beijou sua barriga.


— Quem era no telefone? Eu ouvi tocar.


— Marcos. - Del se sentou. — Ele queria falar com você.


— A Gabriela vai acabar me arranjando problemas com ele, sabia? - Regina também se sentou e descansou as costas na cabeceira. — Esse negócio de não querer ir para a casa do pai... Daqui a pouco ele vai achar que sou eu quem fico colocando grilos na cabeça da menina.


— A Gabi acabou de fazer quinze anos, amor, ela está na idade de fazer um pouco de rebeldia. - o homem se levantou, desligou o ar condicionado e abriu as janelas. — É normal.


— Isso não é rebeldia, Del, é mimo. - se levantou. — Mimei demais, por isso está assim. - foi até o banheiro. — Vou tomar um banho, as crianças já levantaram?


— Já, João está ansiosíssimo e a Gabriela está fingindo que não quer ir. - deu um meio sorriso. — Por que você não vem com a gente?


— Bem que eu ia se já não tivesse marcado com a Dina. - se despiu e entrou no box. — Estou em falta com ela. - ligou o chuveiro.


— Ela estava meio indisposta ontem nas gravações, o Talma até resolveu liberar ela mais cedo. - se escorou na porta do banheiro.


— Por que você não me avisou? - perguntou enquanto se ensaboava. — Eu tinha ido vê-la ontem mesmo.


— Ela que pediu para eu não te avisar. - cruzou os braços. — Disse assim: "Rangel, não fala com a Gina que eu vou sair mais cedo senão ela vai ficar grilada atoa."


— Bem a cara dela dizer isso mesmo. - Regina revirou os olhos enquanto saía do box. — Pega a minha toalha, por favor.


— Essa? - segurou a toalha na mão. — Vem buscar.


— E o que vai acontecer se eu for buscar? - pisou no tapete com as mãos na cintura.


— Você se seca. - arqueou a sobrancelha.


— E se eu não for?


— Continua molhada.


— Por que eu acredito que essa frase tem duplo sentido? - estreitou os olhos.


— Quem sabe?


— Tudo bem.



Na ponta dos pés, Regina atravessou o banheiro e estendeu a mão para pegar sua toalha, mas seu marido foi mais rápido e segurou sua cintura. Os dois se olharam por alguns instantes antes de se beijarem, mas quando o contato ocorreu, foi impossível que a atriz não se lembrasse dos beijos e dos toques de seu amante.



— Por favor, agora não. - se aproximou do ouvido do marido. — A gente tem hora.


— Mas eu te quero. - Del mordeu o ombro da esposa.


— Mais tarde, eu prometo. - se afastou e olhou os olhos do marido.


— Você está distante, não vai me dizer o que está acontecendo? - ajeitou os óculos em seu rosto.


— Não tem nada acontecendo, Del. - beijou o peito do marido. — Você saberia se estivesse.


— Não tenho tanta certeza. - beijou a testa da esposa. — Toma. - estendeu a toalha. — Te espero na cozinha. - virou as costas.


— Del? - o seguiu enquanto envolvia a toalha na cintura. — Amor, espera. - segurou sua mão.


— Que foi? - tirou os óculos da face.


— Eu amo você.


— Também. - soltou a mão da esposa da sua.


— Não faz assim. - fechou os olhos.


— Depois a gente conversa, vai se trocar.



Rangel saiu do quarto deixando Regina com o coração aos pulos. A mulher se sentou na ponta da cama, acendeu um cigarro e com a mão livre, massageou sua nuca. Estava perdendo a mão, estava exagerando, não sabia por quanto tempo levaria aquela vida dupla, mas se recusava a abdicar dos dois homens que tinha. Tragou seu cigarro, olhou a hora no relógio e abaixou a cabeça. O tempo corria rápido contra ela e a favor da verdade que alguma hora viria à tona, mas ela estava disposta a adiar aquela decisão que era certa em sua cabeça, só precisava ter certeza de uma coisa.


Dispersando aqueles pensamentos, Regina se secou, apagou o cigarro, colocou no corpo um roupão qualquer e foi até a cozinha enquanto ouvia as vozes animadas de João e Gabriela com o passeio que fariam. Cumprimentou Rita e as demais empregadas e se sentou no lado esquerdo do marido que ocupava a cabeceira da mesa. Seu ultimogênito tagarelava alegremente sobre o super passeio que o padrasto os levaria enquanto Gabriela, que parecia ter perdido a fala, se aquietou.



— Seu pai anda querendo falar comigo, Gabriela. - Regina disse enquanto cortava o pão.


— Ele sabe que eu não ando querendo ir, mãe. Eu falei com ele.


— Mas tem um mês que vocês não se veem. - colocou presunto no pão. — Você sabe que tem que ir a Campinas aos finais de semana como André vai.


— Mãe, eu não sou o Dré, eu não quero ir. - Gabriela ajeitou os cabelos. — A senhora pode respeitar isso?


— Eu respeito a sua decisão desde que não afete a minha relação com o Marcos. - bebericou o café. — Semana que vem você vai e ponto final.


— Mas a estreia da novela é na semana que vem e você disse que me levaria.


— Você só vai comigo se for para o seu pai, estamos entendidas? - olhou nos olhos da filha.


— Estamos. - abaixou a cabeça.


— Del, eu já acabei, vamos? - João falou de boca cheia e cheio de migalha de bolo em sua boca.


— Filho, isso tudo é pressa? - Regina quis rir, mas se conteve.


— Calma, campeão, a gente já vai. - Del olhou o enteado como a esposa olhava. — Já acabou, Gabi?


— Já, vou só pegar minha bolsa. - colocou o copo sobre a mesa. — Dor infernal. - resmungou.


— Tem remédio na minha bolsa. - olhou o filho. — Vai lavar essa boca, amor. - deu a ordem ao filho que saiu correndo pela casa.


— Tenho que ficar de olho nela? - Rangel perguntou.


— É cólica, a minha vai e a dela chega. - engoliu o que mastigava. — Vocês vão demorar?


— Voltamos no meio da tarde. - limpou a boca. — Que horas você vai na Dina?


— Vou me vestir e saio.


— Ok. - olhou as crianças que voltaram a cozinha. — Estão prontos? - os dois assentiram. — Então vamos. - se levantou.


— Tomem cuidado, bom passeio.


— Teremos.


— Tchau, mamãe. - João beijou o rosto da atriz.


— Tchau, meu amor. - abraçou o filho.



Regina voltou a tomar seu café quando ouviu o ronco do motor do carro do marido, mas o telefone tocou. Quem atendeu foi Rita.



— Alô? Oi, seu Marcos. - a atriz arregalou os olhos e fez gestos de que havia saído. — Não, a Regina acabou de sair, disse que precisava fazer umas compras.


— Despacha ele de uma vez. - falou sem fazer som.


— Ah, sim. Eu digo, sim. - a mulher quis rir. — Pode deixar. Até logo. - desligou o telefone. — Ele disse que era para a senhora ligar assim que chegasse.


— Estou sem paciência nenhuma para aturar a ladainha do Marcos. - a atriz se levantou. — Eu vou sair. Se alguém ligar, anota o recado, ok? - ajeitou os cabelos.


— Pode deixar.



Conforme a Paraty que o diretor dirigia desfilava ágil pela Avenida das Américas, Gabriela sentia o vento bater em seus cabelos enquanto João olhava através do vidro traseiro todos aqueles em que o padrasto deixava para trás a cada manobra. Todos eles cantarolavam algum rock nacional que tocava alto no veículo já que Del, assim como as crianças, tinha a agitação dentro de seu peito que batia como se tivesse quatorze anos e via o mundo com tanta empolgação quanto João que nem tinha completado dez. Quando o carro parou lá pelos lados de Vargem Grande, deram de cara com uma pista de Kart para a diversão de João e de Gabriela que embora não mostrasse, tinha um espírito ousado e aventureiro dentro de seu jovem coração. Os três brincaram todo o final da manhã e só pararam porque precisavam almoçar.



— Da próxima vez a gente trás a mamãe e o André! - João dava pequenos saltos a frente da irmã e do padrasto.


— Sua mãe não vai entrar em um carrinho desse nunca, João Ricardo. - Del disse como se fosse óbvio.


— A gente finge que vai deixar ela de fora e você convence ela a entrar. - deu de ombros.


— E por quê eu vou fazer isso? - cruzou os braços como quem estivesse levando a conversa mais a sério do que a própria criança.


— Porque sempre que ela chega em casa estressada, vocês ficam trancados no quarto um tempão e quando destrancam a porta a mamãe está sorrindo. - João colocou as mãos na cintura. — Como você deixa a mamãe calma, Del?



Gabriela tentava ficar séria para não dar bandeira de que sabia muito bem o que Del e Regina faziam dentro do quarto, João mantinha os olhos estreitos e com as mãos na cintura esperando uma resposta convincente enquanto o homem, que havia ficado mais vermelho do que a blusa que usava, tentava procurar uma resposta para dar. Rangel ficou tão constrangido que o cigarro que estava em sua mão caiu no chão e ele nem ligou porquê processava a pergunta vinda da criança sob o olhar atento de Gabriela que agora estava com uma cara muito atenta a conversa dos dois rapazes.



— Massagem. - engoliu a seco. — Eu faço uma boa massagem na sua mãe.


— Não deve deixar de ser, né. - Gabriela sussurrou enquanto se sentava na área de descanso do lugar.


— O que você sabe sobre isso, mocinha? - Del agora estava com os olhos arregalados.


— O que ela, a tia Tereza e a Tia Dina me falaram, ué. - deu de ombros enquanto brincava com a barra da blusa. — E pelo que elas me falaram, nem deve ser tão legal assim.


— Continue com esse pensamento até os trinta. ­- deu duas batidinhas no ombro da menina. — Vai me causar menos dor de cabeça do que sua mãe.


— A minha mãe te deixa com dor depois da massagem? - João ficou em pé na cadeira de madeira. — Por que ela não faz em você?


— Ela faz, garoto, e como faz... - Gabriela arregalou os olhos para Del e seu jeito de falar. — Mas isso não é assunto para você nessa idade.


— Você vai me ensinar a fazer massagem, Del?


— Você aprende sozinho, João. - piscou para o garoto e voltou comer.



Paralelo a esse momento de descontração vinda do contato de padrasto e enteados, Regina estacionava o carro na garagem coberta. Antes de abrir a porta do motorista com óculos escuros e roupas para lá de comuns, a atriz olhou ao redor para ver se alguém que poderia lhe reconhecer estava no lugar. Não tinha ninguém. Pegando sua bolsa após acender um cigarro, saiu do carro e a passos ágeis caminhou ao elevador que a levaria para onde nunca deveria ter saído sem no mínimo ter feito uma dezena de escândalos e ter estapeado a cara daquela que estava se insinuar para o homem que era seu.


Quando o elevador abriu as portas no andar previamente solicitado, Regina praticamente correu pelo corredor que acendia pequenas luzas a cada passo que ela dava. Ao chegar na porta a atriz bateu uma, duas, três e não teve resposta até que sua curiosidade foi maior ocasionando que ela colocasse a mão e girasse a maçaneta da porta que se mostrou aberta.


Ela entrou no apartamento iluminado pela luz do Sol colocando os óculos escuros acima da cabeça, tirou a bolsa dos ombros jogando no sofá de couro branco chamando pelo nome do amante. Por todo o apartamento poderia ser escutada uma música que Regina conhecia, mas não sabia qual era o nome e como ela não conhecia todos os cômodos, passou a abrir porta por porta até que ouviu o barulho de chuveiro e um assoviar que seguia a harmonia musical, ato este que a fez sorrir. Tirou o tênis que usava para andar só de meias pelo chão de taco marrom e entrou na suíte do quarto a tempo de ver Antônio ensaboar os cabelos debaixo d'água.


Muito entretido em seu banho e em seu assoviar, Antônio nem sequer percebeu a chegada de sua amante. Seus pensamentos estavam voando para todas as direções, ultrapassando fronteiras, chegando mais longe do que qualquer viagem que o ator pudesse dar. Ao sentir o cheiro de cigarro espalhar-se pelo banheiro, abriu os olhos para ver a amante encostada na soleira da porta só com uma regata rosa de tecido fino o suficiente para ver que não estava usando sutiã, short jeans de lavagem azul-marinho, meias nos pés e ao contrário de sua personagem, optava por manter os cabelos castanhos escorridos esperando seu homem sair do banho.


Ela sorria antes de cada tragar e a cada vez que expelia a fumaça do cigarro. Sem maquiagem, sem disfarces, sem nenhuma luz que pudesse ofuscar o brilho que os olhos dela tinham. Simples, doce. Antônio deixou de esfregar os cabelos e deixou com que a água caísse de uma forma que não interrompesse o contato ocular que passou a manter com a mulher que apagou o cigarro, jogou a bituca no lixo e se encostou na pia com os braços cruzados.


Antônio tinha a mania de se secar e se enrolar dentro do box e quando saiu, caminhou rumo a amada amante para abraçá-la sem se importar se estava completamente seco. Sem se desfazer da posição na qual estava, Regina deixou-se ser abraçada e em consequência de algumas gotículas de água que ainda estavam por secar no corpo masculino, arrepiou-se. O galã colocou as mãos em seu pescoço para fazer com que ela o olhasse nos olhos, ela desfez o cruzar dos braços e sustentou olhou nos olhos do amado com tanto carinho que fez com que seu coração batesse descompassado dentro do peito.


Para ele, ela era uma das mulheres mais lindas do mundo.


O beijo aconteceu e do contrário do que já era esperado, do furacão, do desespero e da sensação de que poderia ser a última vez, aquele beijo trazia a calmaria, a serenidade, a paixão que embora ardente, não tinha pressa nos respectivos corações porquê era do saber dos dois envolvidos que aquele amor não acabaria. Trazia a certeza de mesmo que o futuro fosse incerto, eles tinham a certeza de que a paixão que os envolvia não era.


Antônio desabotoou o short, desceu o zíper e junto da calcinha empurrou as vestes da amante para o chão enquanto sentia suas mãos deslizarem por sua cintura e soltar a toalha para revelar sua nudez. Ele a sentou no armário de madeira do banheiro enquanto a boca ocupava-se de beijar o pescoço pálido, os braços femininos foram erguidos para que ele retirasse o último tecido que impedia o contato dos corpos nus. Regina envolveu as pernas na cintura masculina a medida que o membro, a essa altura já ereto, penetrou-a de forma vagarosa.


Regina gostava tanto dele que chega a doer.


Cansado daquela posição, ainda dentro da mulher que naquele momento era dele, ele a ergueu no colo, a levou para a cama e a sentou na ponta do colchão. Ele acarinhou a face rubra, o colo já suado e novamente a beijou. Aquele contato não tinha pressa. As línguas se cruzavam, os lábios se roçavam em um contato tão íntimo que eles se esqueceram de haver música ecoando por aquele apartamento. Perfeitamente sincronizados, os dois sentaram-se na cama a medida que ela ficasse sentada em cima dele e ele tivesse as duas mãos livres para saciar seu desejo de tocá-la e beijá-la de todas as formas que conseguisse enquanto ela que estava de costas a ele só conseguisse fincar as unhas curtas na cintura masculina enquanto gemidos misturados a palavras desconexas saíam de sua boca.


Como o esperado de um casal apaixonado que durante o ato sexual fazia questão de externar todo o amor que sentiam, Regina disse amar Antônio. Antônio disse que era louco por Regina. Ela, cansada daquela posição, virou-se para frente fazendo com que ele caísse deitado na cama e sentada por cima, o beijasse. Antônio tornou a penetrá-la enquanto beijava o pescoço e sugava os seios de uma mulher que banhada, extasiada, enlouquecida de paixão e desejo, tinha um dos orgasmos mais serenos de sua vida. Antônio, ao sentir a contração de Regina dentro de si, deixou-se levar fazendo com que ejaculasse dentro dela. As peles quentes, marcadas, suadas, ficaram ali procurando a calmaria pós êxtase. Os cabelos da atriz faziam uma espécie de cortina, isolando as faces dela e do amante do resto do mundo e os sorrisos nas faces era tão singelo quanto o beijo que trocaram. As línguas se misturavam devagar, com calma, mas com o desejo dos casais apaixonados.



— Você disse que me ama. - Antônio colocou uma mecha do cabelo atrás da orelha da amante.


— Você disse que é louco por mim. - Regina beijou o queixo do amado.


— É verdade?


— Eu estar aqui agora não é uma resposta?


— Então diz de novo, olhando no meu olho.



Regina Duarte encarou os olhos e a feição juvenil de Antônio Fagundes e se perguntou como foi se apaixonar justamente por um homem que era potencialmente um destruidor de corações.



— Eu amo você. - confessou.


— Ama, é? - deu um quase sorriso.


— Amo.


— Muito? - beijou seu queixo.


— A cada dia mais. - sussurrou.


— Então fica comigo. - Antônio saiu de dentro da amante e a virou na cama. — Fica comigo de verdade.


— Eu estou com você. - alisou sua face.


— Só comigo? - arqueou a sobrancelha.


— Te faço a mesma pergunta. - a mulher segurou o maxilar masculino e estreitou os olhos. — Quem cobra muito, na verdade, deve. Você está só comigo?


— Eu estou só com você. - acarinhou seus cabelos.


— Eu posso acreditar nisso, Antônio?


— Pode. - lhe deu um beijo estalado. — Deve. - lhe deu um beijo na testa. — Eu sou seu.



Regina não se prolongou na cama por muito tempo, após algumas carícias e beijos trocados, a atriz levantou-se vestindo apenas sua blusa e calcinha para se aventurar na cozinha do apartamento de Fagundes enquanto ele acendia seu cachimbo ainda deitado na cama. A namoradinha do Brasil demorou um certo tempo até se encontrar entre os armários do cômodo e quando isso aconteceu, foi fácil achar os ingredientes daqueles que estão com fome, porém com extrema preguiça de preparar algo mais elaborado: macarrão.


Antônio, sentindo o cheiro do molho que passou a impregnar toda a moradia, levantou-se para caminhar até onde cheiro vinha e foi impossível não parar para admirar a imagem que era Regina Duarte usando calcinha e uma blusa qualquer enquanto misturava alguma coisa em uma panela e fumava um cigarro. A sensação era de paz e tranquilidade, desejo repentino e avassalador, fazendo com que o homem desfilasse pela linha tênue de lutar para ter o que queria ou deixar que a vida fizesse o que era conveniente.


A mulher se virou quando sentiu um cheiro mais forte e viu Antônio com os cabelos bagunçados, com as mãos enfiadas no bolso de uma bermuda qualquer e o cachimbo exalando uma fumaça mais densa que o seu cigarro pelo ambiente, ela sorriu e aproveitou para pegar um pouco do molho e levar até a boca o amante.



— Eu não sou nenhuma Raquel Accioli, mas não está tão ruim, né?


— Até que não. - Antônio disse após provar. — Mas você como cozinheira é uma ótima atriz.


— Você é tão engraçado que está me fazendo rolar de rir. - ironizou. — Olha como eu estou rindo, olha. - apontou para a própria face depois de tragar o cigarro e voltar para o fogão.


— Vai ficar grilada comigo? - colocou o cachimbo em cima da mesa e abraçou-a pela cintura apoiando o queixo em seu ombro. — O que eu posso fazer para ajudar?


— Parar de se esfregar em mim, é uma boa ajuda para eu não perder o ponto. - salpicou orégano e pimenta-do-reino no molho. — Que horas você tem que ir para o Teatro?


— Só mais tarde, o elenco já foi todo escolhido e vamos começar a fazer leitura de mesa. - deu um beijo estalado no pescoço de Regina. — Que horas você tem que ir?


— Eu ficaria aqui o dia todo se não tivesse marcado uma visita para Dina. - empurrou-o com os quadris. — Estou em falta com ela há semanas.


— Como é que ela está? - se sentou em uma das cadeiras.


— Às vezes eu acredito que ela vai sair dessa, às vezes acredito que não. - apagou o fogo, afundou o cigarro no cinzeiro e passou a mão nos cabelos. — Eu só não sei o que posso fazer para ajudar.


— Dê a uma força para ela, a faça sorrir. - Antônio deu-lhe uma piscadela. — Agora vamos ver se essa comida está boa mesmo.


— Tomara mesmo que esteja. - a atriz desligou o fogo. — Onde ficam os pratos?


— Deixa que eu pego. - se levantou e abriu os armários. — Os talheres estão nessa gaveta aí.


— Onde vamos comer? - fechou a gaveta.


— Na sala, vem.



Os dois caminharam até a sala do ator e ele desligou a vitrola que não emitia som há bons minutos enquanto a amante olhava as folhas avulsas soltas sobre a mesa.



— Amor? - o chamou.


— Eu sou seu amor? - se aproximou, deixou os pratos na mesa e deslizou o nariz pelo pescoço alvo. — Regina, você está vermelha?


— Para, eu fico sem graça. - a atriz abaixou a cabeça.


— Você também é meu amor, boba. - beijou seu pescoço. — O que você queria falar?


— Era sobre essas folhas, são do teatro? - segurou uma delas.


— É. - segurou sua cintura. — É o estudo do novo texto.


— Ainda com o CER? - arqueou a sobrancelha.


— É, o dessa vez é "Fragmentos de um Discurso Amoroso".


— Roland Barthes? - assoviou. — Corajoso.


— Não gosta da ideia?


— Não é isso, é que é um texto elitista demais, sabe? - deixou a folha em cima da mesa e pegou outra. — E a sua companhia trabalha com as massas, vai ser trabalhoso desmontar tudo.


— Então trabalha comigo. - a virou. — Vamos desmontar Roland Barthes juntos.


— Você é louco. - riu brevemente. — Sabia que tem um autor que eu namoro há anos, mas sempre fico grilada em levar alguma coisa dele para o palco? - brincou com o cordão no pescoço do amante.


— Qual?


— Calderón De La Barca. - mordeu o lábio inferior.


— O gênio barroco? - arqueou a sobrancelha, surpreendido. — Gostei. - sorriu. — E qual seria? Eu ia gostar de te ver sendo La Dama Duende.


— Foi nesse texto que eu pensei, mas também transo muito com La Vida És Sueño.


— E quem você seria em A vida é sonho? - arregalou os olhos.


— O Segismundo, ué. - Regina respondeu e Antônio deu uma longa risada. — Não gosta da ideia?


— É genial, eu nunca ia imaginar. - beijou os lábios da amante. — Põe esse texto no palco que eu vou te aplaudir de pé na primeira fila.


— Não me tente, homem. - balançou as mãos. — Não me tente que eu faço mesmo isso. - se afastou do homem e deu a volta na mesa olhando todos aqueles papéis. — Me diz uma coisa, a Clarisse vai estar com você nessa montagem?


— Não, ela não quis. - coçou o queixo.


— Ah! - ajeitou a blusa que usava. — Qual é o elenco?


— Roberto Moreno, Luca Baldovino, Renato Orbite e uma novata. Mara Carvalho, o nome dela.


— Não conheço, são bons? - o olhou.


— Promissores. - ajeitou os cabelos. — Vamos comer, você ainda tem que ir na Dina, esqueceu?


— Não esqueci, aliás, essa é a blusa que eu quero. - apontou para a veste em seu corpo.


— É sua. - sorriu e estendeu a mão. — Vamos comer antes que esfrie.

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