Volta por cima

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São Caetano do Sul, ano de 1973.


Não faziam muito esforço aqueles que escutavam a gritaria e o barulho de cacos de vidro que se quebravam na casa 7 daquele cortiço. Eram por volta das sete horas da noite quando a jovem Cássia discutia mais uma vez com sua mãe. A mulher de porte rígido e olhar conturbado fazia da filha o pilar de seus principais problemas, por outro lado, não era de se esperar que uma menina que havia acabado de completar quinze anos estivesse se sentindo cada vez mais cansada daquela vida que só era baseada em cobranças, gritos, espancamentos e uma enxurrada de culpas desenfreadas. A menina Cássia, a mais nova dos irmãos, corria por dentro do quarto-sala que dividia com o que deveria chamar de família pedindo ajuda em vão, ninguém parecia ouvir suas súplicas.



— Mas eu não tive culpa!


— Você é a pior coisa da minha vida, menina! - agarrou em seus cabelos.


— Mãe, você está me machucando, para por favor. - tentou segurar a mão da mulher.


— Eu só vou parar quanto conseguir te matar! - lançou-a contra a parede mais próxima.


— Socorro! - ela agachou no chão como um feto. — Alguém me ajuda!


— Ninguém vai ajudar uma merda como você, sua infeliz!



Aquilo não era uma família, nenhum deles eram a sua família. Família acolhia, tratava bem, tratava com respeito e não do jeito que ela desde sempre foi tratada, como um lixo.



— Você vai aprender. - a mãe segurou-a pela gola do vestido e levantou-a. — E se não aprender, eu te espanco até te matar.



Veio o primeiro tapa.
Depois o segundo.
E o terceiro veio como um choque.


Choque esse que atravessou por seu corpo com tanta força que teve a impressão que iria morrer, mas eram somente seus reflexos que clamavam para que ela fugisse daquilo, daquela dor, daquela culpa que sabia que não era dela. Ela não teve culpa. A mãe não havia a avisado que era para tirar o lixo e agora ela estava sendo a culpada por deixar o ninho de passarinho que chamava de casa com mau odor.


O pai, sempre impassível durante toda a situação, fez o que sempre fazia: se sentou de frente ao minúsculo televisor e colocou algo aleatório para assistir enquanto comia. Os demais irmãos estavam muito ocupados para arrancar a garota dos braços maldosos daquela em que ela deveria chamar de mãe.



— Fora da minha casa, fora da minha vida, eu nunca mais quero ver você.



A menina Cássia foi posta para fora de casa naquela noite com um colchão, duas ou três roupas de cama e uma mala improvisada com seus pertences, que não eram muitos. Enquanto caminhava pelas ruas de São Caetano do Sul, Cássia chorava copiosamente enquanto clamava a Deus que a levasse para seu lado com o propósito de não mais sofrer, sentia seu peito se contorcer em uma dor lancinante de profunda tristeza, sentia suas pernas fraquejarem e o cansaço a fez pela primeira vez dormir na rua.


Tempos mais tarde, largou o emprego como vendedora, abandonou os amigos e foi para São Paulo tentar ganhar a vida. Com gana de vencer, trabalhava de dia e estudava de noite, seu quadro de depressão agravou-se quando com dezessete anos realizou seu primeiro aborto para depois ser abandonada pelo primeiro namorado alguns anos mais velho.


Ah! E como doeu.


Mais uma vez o desamparo, mais uma vez o abandono, mais uma vez tendo que se virar sozinha. Por que viver? Por que continuar? A troco de que continuar vivendo daquela forma miserável? Cogitou tantas vezes o suicídio que tomou a coragem para pegar uma faca e apontar para seu peito.



— Eu não consigo mais, não dá mais.



A desmedida e desenfreada dor fazia com que as lágrimas que nasciam em seus olhos queimassem a cada vez que deslizavam por seu rosto já rubro, e quando fechou os olhos para dar cabo de sua própria vida, dois de seus amigos adentraram o cômodo lhe afastando do objeto que a faria cometer o mais mortal dos pecados.



— Porra, você enlouqueceu? - um amigo segurou a faca.


— Não faz isso, por favor. - uma amiga a abraçou.



Esses amigos a levaram para longe daquele apartamento e a levaram para o mais distante ambiente, onde Cássia se livraria de todo o mal que a envolvia. Aquela casa de show improvisada em um galpão no subúrbio de São Paulo tinha cheiro de urina, cigarro e sexo. Cássia, ainda atônita com o fato que a envolveu, arregalava os olhos para as pessoas que dançavam ou quase se amavam em público.



— Joana, essa é a Cássia.


— Oi. - deu um aceno tímido.


— Cássia... - a moça se levantou e se aproximou com um sorriso levemente embriagado. — Bem-vinda ao meu canto. - abriu os braços. — Aqui ninguém vai te julgar, muito pelo contrário... No meu canto, você é a estrela. - tirou um pacote do bolso e estendeu.


— O que é isso? - arregalou os olhos.


— Seu passe para o paraíso. - sorriu.



Cássia Kiss, naquela altura com dezesseis anos, foi levada para o centro da pista de dança improvisada e em meio calor humano e acolhimento entre aquelas pessoas que haviam lhe tirado de um caminho aparentemente sem saída, começou a dançar descontroladamente e a gritar para exorcizar seus demônios. Ela pulava, dançava, gritava e sorria, até que do meio da multidão, um ser que parecia bailar de tão leve, sorriu e lhe estendeu a definitiva chave do paraíso.


Abriu os braços para a maconha.
Beijou os lábios doces do LSD.
Casou-se com os cigarros e o álcool.



O uso desenfreados dessas drogas acompanhou também quadros clínicos severos de bulimia e depressão. Comia desesperadamente, induzia o vômito e em seguida, chorava por feito isso horas a fio até sair das órbitas com algum alucinógeno. Um círculo vicioso e doentio. Uma tentativa falha de fugir da dor sem morrer. Matando toda sua vitalidade a cada dia.


Mesmo assim, ela se formou.


Nunca faltou uma aula da escola, sempre aplicada tanto nas ciências humanas quanto nas exatas, Cássia Kiss viu-se em uma sinuca de bico ao ter de escolher qual seria sua graduação. Sua vida mudou drasticamente enquanto andava pela Avenida Paulista e viu um grupo de Teatro amador fazendo sua apresentação ao ar livre, os olhos da menina que já havia completado dezessete anos brilhavam e dentro de seu coração um desejo fervoroso palpitou: ser atriz.


A arte da atuação salvaria a vida dela.


Cássia largou definitivamente as drogas aos vinte e um anos quando estreou na Rede Bandeirantes como Flávia, da novela Cara a Cara. Em 1981, mudou-se para o Rio de Janeiro e como não tinha o que comer e onde dormir, fazia dos pontos de ônibus da zona sul carioca seu teto e os jornais velhos que encontrava, seu cobertor. Trabalhou como faxineira em casa de milionários, vendeu sanduíches na praia e varreu chão de rua até juntar dinheiro e entrar para uma das maiores escolas de Teatro e Música da América Latina, A Fundação das Artes.


Seu sonho estava se tornando realidade.


Sua vida mudou drasticamente mais uma vez. A pobre menina que foi jogada na sarjeta como um bicho medonho agora poderia respirar livre e leve ansiando por novos e felizes tempos. Cássia Kiss era uma estrela em ascensão. Seus trabalhos já rendiam elogios de renomados profissionais, seus professores da Fundação das Artes indicavam-na para mais e mais papéis até que passou a pertencer ao elenco de estrelas da Rede Globo de televisão, atuando no Caso Especial por duas vezes.


Ela estava chegando lá.



                                   *******



Rio de Janeiro, 04/03/1985. Segunda-Feira.



— Ei, quem é você? - a mulher que usava óculos fundo de garrafa, perguntou.



Cássia Kiss estava permanecia sentada de frente a entrada do Estúdio A, do Jardim Botânico, já devidamente caracterizada como sua personagem e quando ergueu o olhar para ver quem lhe chamava, quase caiu para trás já que a dona da voz era um de seus maiores ídolos da TV.



— Eu? - perguntou e a mulher afirmou. — Eu sou Cássia. - estendeu a mão. — Cássia Kiss.


— Regina Duarte. - entendeu a mão de volta. — É você que vai ser do núcleo do Bógus?


— Sim, por quê?


— Não, nada. - Regina se sentou ao lado de Cássia — Qual é o seu personagem?


— Lugolina de Aragão. - respondeu em um fio de voz.


— E quem diabos é essa? - Regina arregalou os olhos por detrás dos óculos.


— Lulu das Medalhas.


— Ah... - mexeu em seus textos. — Já conheceu o Bógus?


— Sim, já fomos apresentados.


— Regi... Cassinha!



Del Rangel, que carregava João Ricardo em seu colo, abriu os braços para Cássia que riu e abraçou o colega sobre o olhar de Regina que não gostou nem um pouco daquela aproximação toda. De onde eles se conheciam?



— Del! - Cássia desfez o contato. — Há quanto tempo!


— Muito! Por onde você anda?  Você sumiu.


— Muito trabalho, cara, sabe como é. - deu de ombros.


— Eu sei. - colocou a criança no chão. — Ando atolado de trabalho até o pescoço. - beijou a testa de Regina. — Amor, vocês já se conhecem?


— Nos conhecemos agora. - puxou João para seu colo. — Mas eu não sabia que você e a Cassinha eram amigos, Antonio.


— Nos conhecemos em uma das reuniões do Wolf. - Del respondeu sobre o olhar atento da esposa que acendia um cigarro.


— Se lembra do porre que aquele contra regra tomou? - Cássia já estava rindo.


— Mas é claro que eu lembro. - Del riu junto da amiga. — Ele fez um strip-tease na mesa de mogno do Wolf...


— E quebrou aquela escultura horrorosa...


— Eu nunca vi o Maya tão puto com alguma coisa antes.


— Achei linda a interação dos amigos de longa data, mas como eu tenho hora... - Regina, que queria esquartejar seu marido com requintes de crueldade, pegou sua bolsa com a mão livre. — Vamos, Rangel?


— Vamos, vamos sim. - o homem pegou os textos da esposa. — Cassinha, a gente precisa fazer uma reunião daquela algum dia.


— Por favor, eu preciso rir daquele jeito de novo. - Cássia colocou a bolsa que carregava no ombro.


— Para onde você vai? A gente pode te dar uma carona.


— Eu vou para Botafogo.


— Uma pena, Cassinha, a gente vai para o sentido oposto. - Regina sorriu amarelo.


— A gente vai? - Rangel enrugou a testa.


— Você esqueceu que tenho que passar na casa da Dina, amor?



Del Rangel percebeu que tinha se enrolado em maus lençóis quando a esposa o chamou de "amor" e logo despediu-se da amiga que sentiria na pele pelos próximos meses o amargor de ser inimiga de uma Regina Duarte enciumada.


Ah, e ela sentiu.


Regina a perseguia de propósito mesmo durante as cenas que gravavam. Projetava a voz de Porcina com ainda mais força fazendo Cássia, que interpretava Lulu, encolher-se de medo tanto por sua personagem, quanto pela própria que via e lia nos olhos da protagonista a raiva por achar que ela queria seu marido.


O quadro clínico de bulimia e depressão de Cássia acentuou-se durante as gravações de Roque Santeiro, por vezes a atriz pediu licença para comparecer ao médico por alegar uma doença até então desconhecida ou sumia durante os intervalos para se esconder tanto das perseguições quanto dos olhares, para se lambuzar em um prato de comida e em seguida regurgitar tudo no lugar mais próximo que encontrava.


Em uma dessas vezes, Cássia que gravava uma externa na cidade cenográfica de Asa Branca, em Guaratiba, se escondeu ao lado da fachada da casa de Florindo Abelha e se agachou para vomitar, mas como seu estômago estava vazio, não conseguiu. A pobre mulher que nem tinha chegado aos trinta anos de vida, enfiou dois de seus dedos na boca e colocou-os tão fundo na garganta que bloqueou sua saída de ar e acabou desmaiando.



— Mas que porra é aquela?



Regina Duarte dirigia o carro de Porcina quando viu o exato momento do desmaio de Cássia e deixando o carro completamente desajeitado em sua parada, se aproximou e segurou a moça apagada em seus braços.



— Acorda, cacete! - a ergueu segurando em sua cintura.



Instantes mais tarde, Cássia acordou nos braços de Regina Duarte, que caracterizada como Porcina, tentava colocá-la no carro rosa de sua personagem. A atriz mais velha equilibrava seus passos pelo chão de paralelepípedo enquanto segurava Cássia pela cintura e pelos braços.



— Calma, respira fundo. - Regina tirou a parte de cima de seu figurino e balançou na face da atriz.


— Me deixa ir embora. - sussurrou.


— Para onde? - deu a volta e se sentou no lado do motorista. — Você quer morrer?


— É você quem vai acabar me matando. - Cássia puxava o ar com certa dificuldade.


— Eu? - usou de seu figurino para secar a boca suja da outra. — O que eu te fiz?


— Quer mesmo que eu diga? - a olhou.



Não deu tempo para ela dizer já que acabou apagando e banhada pelo desespero, a intérprete de Porcina dirigiu o mais rápido que podia, evitando, claro, os pontos de gravação da novela. Regina corria muito, pisava no acelerador com vontade enquanto alternava sua atenção para Cássia que permanecia desmaiada ao seu lado tão gelada que parecia um cadáver. Quando chegou no stand da direção, saiu correndo, chamando Zé Wilker para lhe ajudar.



— Mas o que diabos aconteceu?


— Eu sei lá, ela estava desmaiada na rua. - Regina trouxe o ator até seu carro.


— Cacete, ela está mais branca que um papel. - Wilker pegou a mulher no colo. — Vai chamar um médico, eu vou colocar ela lá dentro.



Regina guiou o carro novamente até o ponto médico que ficava em outro ponto da cidade cenográfica e explicou de forma atrapalhada o que tinha acontecido para em seguida os médicos tomarem as devidas providências.


Cássia Kiss foi levada ao Rio de Janeiro as pressas, sendo submetida a uma bateria de exames de todos os tipos, incluindo tomografia cerebral e quando acordou, no quarto com acesso de soro aplicado em seu braço, viu que a própria Regina e Marcos Paulo, um dos diretores da novela, conversavam com um médico.



— Ei, onde eu estou?



Todos voltaram sua atenção a ela e o médico foi até sua direção medindo sua temperatura.



— Como a senhora se sente?


— Com fome. - tentou se sentar.


— Não, não force. - o homem segurou em sua mão. — A senhora precisa descansar.


— Mas eu tenho que trabalhar, moço. - tentou novamente.


— Não, não precisa. - Marcos se aproximou. — Agora você precisa se recuperar.


— É, Cássia. - Regina disse. — Escuta o que eles estão falando.


— Você? O que você está fazendo aqui? - Cássia molhou os lábios. — Você faz da minha vida um inferno desde que essas gravações começaram e agora quer pagar de inocente? De santa? - todos olharam para Regina que abraçou o corpo e abaixou a cabeça. — Eu não ameaço em nada o seu casamento não, sabia? Eu não dou em cima do seu marido, eu não quero o seu marido, não é comigo que você deveria se preocupar e sim com as outras que ele canta e você parece não ver.


— A senhora não pode se exaltar. - o médico interferiu.


— Cássia, se acalma.


— Me acalmar é o caralho! Eu cansei de ter calma enquanto você... - apontou para Marcos. — Finge que não vê o que essa daí... - apontou Regina com o queixo. — Faz comigo dentro e fora de cena.


— Eu te devo desculpas. - Regina se aproximou. — Sei que estou sendo muito cruel com você. - se aproximou. – São grilos meus, você nunca teve culpa de nada.


— A paciente precisa descansar, vocês podem sair, por favor? - o médico abriu a porta. — Se os senhores se recusarem a sair vou ser obrigado a chamar a segurança.



Marcos olhou para Cássia pela última vez e puxou Regina pela mão. A intérprete de Lulu das Medalhas fechou os olhos e afundou ainda mais o seu corpo na maca que lhe servia de descanso, o médico fechou a porta e lhe fez uma série de questionamentos acima de sua saúde, inclusive sobre a frequência de seus desmaios. Ela não mentiu. Informou tudo com riqueza de detalhes, desde de sua infância até a fase adulta, sem ao menos ocultar o uso de drogas ilícitas, o que deu brecha para que o médico lhe desse um diagnóstico que a deixou em órbita: transtorno bipolar.


Seu mundo desabou sobre seus ombros de maneira tão intensa que passou a desconfiar do que era devaneio e o que era realidade em sua vida. Dois dias depois, Cássia, foi liberada para voltar a trabalhar e quando chegou na Globo, Regina foi a primeira a chamá-la para conversar e expôs todas as suas inseguranças a respeito de seu marido, a respeito de si mesma, a respeito de seu peso, a fase tenebrosa de seu casamento e, claro, escutou tudo o que queria e o que não queria da boca de Cássia Kiss que não mediu o peso que suas palavras teriam no peito de Regina. O final da conversa trouxe o veredito, as duas tentariam viver harmoniosamente. Sem boicotes, sem batalhas, e se houvesse a possibilidade, seriam até amigas.


E se tornariam grandes amigas.




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Rio de Janeiro, ano de 1987.



O casamento nos eixos, trabalho fluindo, doença sobre controle, o que mais Cássia poderia querer da vida? Paz. E isso ela não tinha. Afundava-se no trabalho com o propósito de esquecer as mazelas de seu interior, o tratamento de seu transtorno bipolar era cansativo demais para a pobre mulher que havia se tornado tão dependente daqueles malditos comprimidos que não fazia nada sem eles debaixo do braço. Era um para acordar, um para trabalhar, um para sentir fome, um para ter disposição e outro para dormir. Quem aguenta viver dessa forma? Ela não aguentava.


Procurando alento em sabe-se lá onde, Cássia encontrou na Ioga o que precisava para alcançar a paz de seu interior. Encontrou na meditação e nos ensinamentos de Buda que nada é mais precioso que o tempo. Seu consultor espiritual era um homem sábio que a guiava e lhe ensinava muitas coisas, entre elas, a capacidade de manter-se íntegro em meio as adversidades e mazelas que a vida mortal dava. Aprendeu também a como controlar-se seguindo os caminhos do Samsara, das Quatro Nobres Verdades e do Caminho do Meio, que prega entre outras coisas, o não extremismo.


Seguindo a doutrina como quem persegue um mapa do tesouro, a futura intérprete de Leila alcançou não a paz, mas o auto-controle. Não aboliu o uso de seus medicamentos, pois ainda acreditava veementemente na medicina, mas os reduziu drasticamente a ponto de conseguir controlar suas crises bipolares e depressivas com meditação. Aos poucos, também foi abandonando a carne, tornando-se vegetariana; o inevitável álcool era consumido somente em ocasiões especiais, que para ela, eram raríssimas.


Outro passo importante para a resolução de sua vida e evolução espiritual foi revirar seu passado para romper com paradigmas que bloqueavam sua evolução. Vasculhou sua infância e adolescência, permitiu-se dialogar com sua mãe pelo telefone perdoando-a de todas as dores que lhe causou, mesmo que a mulher do outro lado da linha não tivesse proferido sequer uma palavra.


Quando o convite para compor o elenco de Vale Tudo foi proferido pela boca de Leonor Bassères e a sinopse de Leila colocada em suas mãos em novembro daquele ano, a princípio ela pensou em não aceitar. A personagem tinha uma densidade, uma carga emocional que se misturada as suas próprias emoções, seriam o princípio de muitos problemas. Deixou o convite em aberto. Buscou auxílio em seu consultor espiritual, buscou refúgio nos ensinamentos de Buda, entregou-se de corpo e alma aos princípios que aprendeu enquanto estudava na Fundação das Artes e chegou a uma seguinte conclusão: Leila e Cássia eram mulheres completamente distintas embora pudessem chegar a algum dia dividir o mesmo corpo. Leila só existiria enquanto Cássia estivesse de frente as câmeras ligadas, Leila só tomaria cada poro do corpo de Cássia se ela permitisse.


E então como aconteceu com Sidarta Gautama, sua cabeça despertou em iluminação.


Uma semana mais tarde, enquanto caminhava pela zona sul do Rio de Janeiro, a atriz viu ao longe a fachada da emissora em que trabalhava. Caminhou até ela passando e repassando todos os ensinamentos no qual se submeteu nos últimos meses e foi ao encontro de Dennis Carvalho e a própria Leonor que se encontravam na emissora.



— O convite ainda está de pé? - perguntou assim que abriu a porta.


— Claro que está, porra - Dennis disse banhado em expectativa.


— Já tem uma resposta, Cássia? - Leonor perguntou.


— Mas é claro que sim. - estendeu a mão direita. — Darei vida a Leila.



O diretor geral e a escritora da novela olharam-se com tranquilidade, sem jamais deixar de perceber o quanto Cássia parecia mais leve, o quanto parecia mais tranquila, o quanto parecia mais bonita. A atriz submeteu-se a um novo corte de cabelo, recebeu os textos de sua personagem sem o peso que antes permeavam seus ombros e permitiu-se explorar cada poro de Leila com a leveza de uma borboleta que repousa em um ombro livre de qualquer culpa.


Ela não mais carregava tanta culpa.
Mas agora, ela com certeza cairia e se levantaria.
Afinal, Vale Tudo para alcançar a iluminação.

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