I - Alegria

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Sentado sobre a maca, a fisioterapeuta o ajudava a realizar pequenos exercícios. Esticar e dobrar os braços e pernas, mexer os dedos, virar a cabeça – essa sendo uma tarefa ainda difícil devido à sensibilidade no pescoço. Sentia uma vontade quase indomável de descer da maca, encostar seus pés no chão frio e correr para longe dali. Contudo, os medibruxos o lembravam constantemente de que precisava dar um passo de cada vez em sua recuperação. Já fazia um pouco mais de uma semana desde que acordara, mas os cuidados ainda eram muitos, e não podia fazer nada mais do que se sentar e mexer as pernas. Afinal, foram seis meses perdidos.

Seis meses em coma.

Passar tanto tempo preso a uma cama era algo impensável para Snape. Mal dormia três horas por noite – ainda mais no período da guerra -, e agora via-se com seis meses de atraso, quase 182 dias a menos de vida – não que ele ligasse muito por ter alguns dias faltando. Porém, o incomodava ter passado tanto tempo inconsciente. Sentia-se aflito pela falta de notícias, de informações. A única coisa que sabia era que Potter havia derrotado o Lorde das Trevas; foi uma das primeiras coisas que a enfermeira lhe contou. Era complicado obter as respostas que queria, pois estava impedido de falar.

Ainda não estava claro para os medibruxos qual era a extensão do dano em sua garganta e, consequentemente, em suas cordas vocais. Os profissionais optaram por mantê-lo calado por tempo indeterminado. Além do ferimento, ficou seis meses entubado, o que deixou sua laringe ainda mais delicada. Foi a mesma enfermeira que contou sobre a vitória – seu nome era Ayo – que um dia trouxe uma caderneta e pena para Snape. Os itens ficaram abandonados sobre uma pequena mesinha ao lado da maca por alguns dias.

— Não é possível que não tenha perguntas, senhor. — Ayo disse enquanto preparava a seringa de morfina. Snape notou que seu inglês possuía um sotaque estrangeiro. — Em breve poderá receber visitas.

Depois de medicá-lo, sabia que ele ficaria sonolento, mas mesmo assim pegou o caderno e a pena sobre a mesa e os entregou para ele. Seus grandes olhos castanhos brilhavam através da pele escura e seus dentes brancos sorriram para Snape. Ela com certeza não o conhecia, ele concluiu. Pela idade que aparentava ter, poderia ter sido sua aluna, a não ser que viesse de outro país. Os dedos longos de Snape folhearam a caderneta e a ponta da pena encontrou o papel. Felizmente, Ayo desembolsou uma quantia um pouco maior para comprar uma pena que não precisava de tinta.

"Uagadou?", ele escreveu.

— Sim — ela sorriu. — Sou nigeriana.

"Sabe me dizer se Minerva McGonagall está bem? Você a conhece?"

— Ela veio o visitar enquanto estava em coma — juntou as mãos à frente do corpo. — Está bem, sim.

"As aulas em Hogwarts começaram?"

— Não, o castelo ficou bem deteriorado. — Ela puxou uma poltrona para perto da maca e se sentou. — Ainda estão reconstruindo algumas coisas. Sabe, magia não pode resolver tudo.

Não, não pode, ele pensou com certo pesar. Lembrou-se de Dumbledore e a maldição do anel. Pensava que se o feitiço fosse reversível, que se tivesse conseguido dar fim à magia que sentenciou Dumbledore à morte, talvez ainda estivesse vivo e as coisas que acarretaram ao fim da guerra poderiam ter sido amenizadas. Forçou-se a esquecer esses pensamentos, pois pensar no velho diretor ainda era doloroso. A pena em sua mão voltou a se mexer.

"Sabe quem sou?"

— Eu leio sua ficha constantemente. Sei que se chama Severo Snape. — Ela riu com certa travessura. — Mas se está perguntando se sei quem realmente é e o que fez, a resposta é que todos sabem. — Ele a olhou com confusão e Ayo o respondeu ainda sorrindo. — O Ministério não quis esperar que acordasse para julgá-lo. Acho que foi o primeiro julgamento sem que o acusado estivesse lá. Tinha uma base de defesa muito forte, o senhor foi absolvido. Harry Potter conseguiu comprovar que o senhor fez tudo seguindo ordens de Dumbledore.

Snape esqueceu por um momento de todas as perguntas que tinha. Não esperava que seu julgamento já tivesse acontecido e com certeza não esperava que fosse absolvido. Ayo pareceu entender sua surpresa e lhe sorriu mais uma vez, dizendo que muitos comemoraram a declaração oficial de sua inocência, embora ainda houvesse aqueles que torciam o nariz para o ex-espião.

"Mais alguém veio aqui além de Minerva?"

— Sim, sim — ela notou que a medicação já fazia efeito e Snape começava a ficar sonolento. — Harry Potter e seus amigos, e uma mulher... Não me lembro do nome dela. — Ambos franziram as testas; Ayo se forçando a lembrar e Snape confuso. — Ela tem o cabelo metade loiro e metade castanho.

"Narcisa."

— Sim, isso mesmo! — Apontou para o caderno, confirmando. — Ela é muito bonita, se me permite dizer. O senhor é um homem de sorte.

"Como assim?"

— Bem... — O sorriso da enfermeira fraquejou pela primeira vez. — Ela não é sua esposa?

"Claro que não!", ele escreveu rapidamente.

— Ah, sim. Me desculpe, então. — Seu sorriso voltou, e aquilo começava a perturbar Snape. Não era possível que alguém pudesse sorrir tanto. — É que ela esteve aqui muitas vezes, ficava até o horário de visitas acabar. Às vezes lia para você, penteava seus cabelos... Parece ser uma boa mulher. — Ela se levantou, alheia ao leve rubor nas bochechas do homem. — Vou deixar que descanse. Preciso ver os outros pacientes.

Ayo devolveu a poltrona ao seu lugar anterior e sorriu mais uma vez antes de caminhar para a saída. Antes de alcançar a porta, Snape tentou chamá-la, assim descobrindo que realmente deveria ir devagar em sua recuperação, já que tudo que conseguiu emitir foi um grunhido rouco. Ainda assim, a enfermeira voltou-se para ele, que rabiscou uma última pergunta na folha.

"O que significa Ayo?"

— É yorùbá¹ — riu. — Significa "alegria".

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• Notas •

¹ Yorùbá (também referido como yorubá ou iorubá) é um idioma da família linguística nígero-congolesa, falado em países como Nigéria e Serra Leoa. Também é usado em rituais religiosos das religiões de matriz africana.

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