III - Anglesey, País de Gales

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A cara emburrada de Narcisa não sofreu nenhuma alteração desde o momento em que pisou no St. Mungus naquela manhã de novembro. Não era uma pessoa habituada a ter os dentes à mostra, nem mesmo fazia questão de ser agradável, mas até mesmo os funcionários do hospital pareciam receosos com sua postura.

Snape a olhava de canto há alguns minutos. Sua atenção estava presa entre o que seu médico explicava e a mulher intransponível de braços cruzados no canto do quarto. Tentava ignorar o incômodo que suas habituais vestes negras provocavam na nova cicatriz do pescoço.

— Uma equipe irá visitá-lo uma vez por semana — o medibruxo dizia, alheio ao olhar que Snape lançava para a mulher de vez em quando. — Poderemos combinar o dia depois. O senhor precisará, também, vir até o hospital fazer alguns exames periodicamente. Enviaremos uma correspondência quando for preciso. Sra. Malfoy — Snape percebeu como a respiração de Narcisa pareceu ficar presa no meio da ação de inspirar quando ouviu o sobrenome —, só preciso lembrá-la o quanto é importante que o Sr. Snape siga a dieta e tome as poções nas horas certas.

— Ayo foi muito cuidadosa em deixar tudo anotado para mim. — Ela disse com a mesma expressão de antes, o que deixava Snape cada vez mais confuso. — Ele será bem cuidado.

— Ayo é uma querida — sorriu. — Ah, devo lembrá-lo também, Sr. Snape, que estamos todos muito contentes que agora consiga falar algumas pequenas palavras, mas preciso lembrar que ainda não deve se exceder.

— Isso não será problema. — Narcisa disse por cima de Snape que tinha aberto a boca. — Vou mantê-lo de boca fechada o máximo que puder.

Foi a primeira vez que pôde notar alguma mudança na postura de Narcisa. Seus ombros relaxaram e sua boca se curvou em um sorriso mínimo, tão cheio de sarcasmo que Snape poderia recolhê-lo com a ponta dos dedos se atrevesse a se aproximar demais. O doutor Bryne, o medibruxo, pareceu um tanto incerto com o tom de Narcisa, mas permitiu-se um sorriso mais tarde.

Terminou de fazer as mesmas recomendações a Snape, que se segurava para não revirar os olhos, já que era o máximo que poderia fazer estando impedido de falar muito. Bryne ainda falou com Narcisa mais uma vez e desejou melhoras ao seu paciente. Snape, que estava sentado em sua maca – que tocou seu corpo por tantos meses, talvez fosse o contato físico mais longo que tivera com qualquer outra coisa -, se levantou quando Narcisa deu os primeiros três passos em sua direção.

— Podemos ir? — Perguntou ela.

— Sim — respondeu o homem. Disse aquilo pois era o máximo que conseguiria, mas na ponta de sua língua pereceu a frase: "Não é como se eu tivesse escolha".

. . .

Sua mão se afastou do antebraço de Narcisa logo que desaparataram, o que era de se esperar, conhecendo-se a personalidade do homem em questão. Narcisa, contudo, não se afastou tão rapidamente e levou uma mão às costas de Snape, acudindo-o do mal-estar após a locomoção mágica.

— Não queira bancar o forte agora, Severo — a voz de Narcisa se fez através do seu enjoo. — Passou meses desacordado, voltou a andar há poucas semanas, é óbvio que a aparatação é um desafio. Vai vomitar? Se for, por favor, vire para o outro lado. Esse vestido foi caro.

Apesar da sensação de que todos os seus órgãos estavam revirados, Snape conseguiu levar o olhar para Narcisa. As bolotas pretas que eram suas íris emolduraram a mulher num quadro estranho, pintado através de um olhar ferino.

Era estranho porque conseguia ver uma pequena estrada se estender para longe e um vasto campo verde que se perdia no horizonte. Havia, também, uma vaca pastando a uns quatro metros de onde estavam, e bem à sua frente estava a imagem de Narcisa Malfoy, soberana e impenetrável, com seu rosto duro como mármore e seu ar esnobe sustentado pelo vestido de tecido nobre e as joias brutas pendendo em suas orelhas e pescoço.

— Onde? — Perguntou, irritado tanto com o fato de não poder dizer uma frase completa quanto pela maneira presunçosa com que ela o fitava.

— Anglesey.

A sobrancelha esquerda de Snape se ergueu e seus olhos abandonaram o rosto de Narcisa para olhar para frente, observando a casinha. Não era nada comparada à Mansão Malfoy. A vista da fachada denunciava uma casa de tamanho mediano. Possuía dois andares – talvez um sótão -, sua parede era toda trabalhada em pedras e os canteiros estavam repletos de flores diversas. Não soava nada com a família Malfoy, não parecia com um lugar em que Narcisa moraria.

— Gales?

— Sim, estamos no País de Gales. — Narcisa respondeu com displicência, seguindo para a porta de entrada. — É onde estou morando agora. — Girou a maçaneta e gritou por cima do ombro. — Não vou até aí buscá-lo, Severo.

O cérebro de Snape pareceu se lembrar de como enviar as devidas respostas ao restante do corpo e suas pernas se moveram, levando-o pelo caminho de pedras até o hall de entrada. Não era bisbilhoteiro, mas definitivamente era arredio e cauteloso, então não pôde fugir do ímpeto de vasculhar a casa com seus olhos treinados. A primeira coisa que via era a escada à sua direita, logo na entrada. Pelo arco que se abria à sua esquerda podia ver a sala de estar, já no arco do outro lado podia avistar a sala de jantar. Havia uma porta no fim do corredor, que julgou ser a cozinha.

Acima, pôde ouvir passos sobre sua cabeça. Eram longos e precisos, mas pareciam ansiosos. Pôde enxergar as pernas compridas de Draco Malfoy assim que surgiu no corredor do andar de cima, e desceu as escadas com os olhos nos degraus. Seus olhos cinzentos, parecidos com os da mãe apenas na cor, observaram a figura do padrinho com certa apreensão e algo mais que Snape não conseguiu identificar.

— Leve Severo até o quarto dele, sim? — Narcisa pediu enquanto colocava seu casaco no cabideiro ao lado da porta. — Vou preparar o almoço.

Ela atravessou a porta que Snape corretamente achou se tratar da cozinha e deixou padrinho e afilhado a sós. Deitou seus olhos sobre o rapaz, incerto de como prosseguir, ainda mais quando não podia iniciar uma conversa.

— Me deixe ajudá-lo com isso. — Draco se aproximou apontando para a pequena maleta que Snape segurava. O homem não tentou impedi-lo. — Vou mostrar o quarto para o senhor.

Seguiu o garoto pela escada estreita. Contabilizou dezessete degraus. Havia uma grande pintura na parede de frente para a escada. Uma pintura trouxa, Snape reparou, devido à falta de movimento da paisagem e das pessoas pintadas que trabalhavam no jardim. Draco o guiou pelo corredor à direita. Por cima do ombro, Snape olhou para trás, para o corredor do outro lado. Viu duas portas. Voltando pelo lado que seguia, havia uma porta logo no começo do corredor e outra no fim. Todo o corredor do segundo andar se estendia com paredes forradas com um papel estampado, preto e branco.

Seu quarto era o do final do corredor. Era um quarto de hóspedes, por isso não havia nenhum traço de personalidade naquele recinto, a não ser o toque de bom gosto sempre apreciado por Narcisa. Uma cama de casal estava postada no centro da parede à direita. Havia uma cômoda e um espelho sobre a mesma, uma lareira pequena, uma poltrona e uma janela. Notou também a porta que levava ao banheiro.

Draco deixou a maleta sobre a colcha cinza que forrava a cama, e o peso que as escassas mudas de roupas faziam era tão mínimo que mal pôde enxergar o colchão afundar.

— Vou deixar que o senhor se familiarize com o quarto e se ajeite. — Draco falou pondo as mãos dentro dos bolsos da calça. — O almoço não deve demorar a ficar pronto, eu deixei algumas coisas adiantadas.

Ele caminhou para fora do quarto lentamente, mas se virou antes de fechar a porta. Snape notou como o suéter verde musgo contrastava com a pele pálida do rapaz e como sua expressão parecia leve apesar das olheiras arroxeadas embaixo dos seus olhos.

— É bom tê-lo de volta, padrinho. Mamãe anda muito cabisbaixa, acredito que a presença de um amigo possa fazê-la se sentir melhor.

A porta do quarto se fechou levando a imagem de Draco consigo. Snape virou-se para sua maleta e levitou as roupas para as gavetas da cômoda, sentindo-se extremamente exausto com o pouco de magia que realizara. As palavras do afilhado se fixaram em sua mente, embora tivessem o deixado confuso.

Estava ali para ser monitorado (era difícil usar a palavra "cuidar" quando se tratava dele. Ninguém nunca havia se importado o bastante para isso). Como Draco esperava que ele, um convalescente, pudesse fazer alguém se sentir melhor se ele mesmo precisava se curar? Como poderia ele, Severo Snape, cuidar de alguém se, primeiramente, ninguém nunca cuidou dele?

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