Capítulo 2

96 22 11
                                    

    Aquele céu… estava lindo.
    Não, não só lindo: magnífico, belo, puro.
    Edward ergueu sua cabeça, sentindo o cabelo castanho em seu corte padrão penderem para trás ao observar a preciosidade sobre a cidade: o céu apresentando resquícios do maravilhoso tom alaranjado do amanhecer, harmonizando com o resto do outono. Absolutamente maravilhoso.
    A segunda manhã do que parecia uma semana perfeita; exatamente o que ele precisava para construir uma nova perspectiva sobre a vida que tinha.
    Durante os últimos anos, seus pensamentos giravam em torno de tristeza, luto e desmotivação. Não conseguia desapegar da solidão que sentira após a morte de Harold, e sua vida trivial não contribua para a sua superação. Edward sempre sentia que estava em um penhasco. Não sabia, porém, se estava em seu fundo ou em sua ponta, pronto para pular, mas lhe faltando a coragem para dar um último passo. O que faltou para isso acontecer? Ele não sabia ao certo, apenas que não faltou muito.
    Agora ele já não queria mais dar um último passo, queria dar meia-volta e continuar caminhando até onde o destino lhe permitisse ir. Ou escalar as rochas e sentir os raios de sol iluminarem todo o seu ser quando atingisse o topo.
    Ele conseguia sentir isso agora, com aquela manhã lhe enchendo de energia para retomar o controle do seu destino.
    E assim como ele, o parque ao seu lado estava cheio de vida.
    Pessoas caminhavam, conversavam e tiravam fotos por todos os lados. Duas crianças ao longe deitavam na grama e tacavam as folhas secas caídas uma na outra. Uma garotinha afastada montava uma torre, como um castelo de areia, recolhendo e empilhando as folhas num formato de cone. Um garoto surgiu e chutou a pilha, fazendo a garota chorar ao ver sua torre desmoronar e pairar pelo ar até retornar, dividida, ao chão. Ela correu para os braços do pai, berrando coisas que àquela distância eram incompreensíveis. Os dois se afastaram dos destroços da torre imaginária.
    Edward riu internamente. Não pela tristeza da garota, mas pela sua preocupação com algo tão insignificante. Ele sentia falta da infância.
    Seus olhos percorreram o resto do parque, até fitarem o banco no qual viu Sra. Murphy lendo no dia anterior. Mas agora, no seu lugar, estava outra pessoa: uma mulher adulta, o rosto não visível, destacando seu cabelo curto tingido inteiramente de roxo.
    Estranho. Seja lá quem fosse, Edward tinha certeza que jamais havia a visto pela cidade.
    —Como se você conhecesse muita gente. — comentou para si mesmo, abrindo um meio-sorriso entristecido. E então tornou a andar, acidentalmente esmagando as folhas pela calçada.

                              *    *    *

    —Por que não me chamou? Eu teria escutado. — a voz da Sra. Murphy sôou zangada, mas num tom obviamente brincalhão. — Estou velha mas não surda. — concluiu.
    Edward sorriu, lhe lançando um olhar de desconfiança.
    —Se eu tivesse chamado, a senhora me deixaria ir embora?
    —Claro que não!
    —Imaginei.
    Ambos sorriram.
    Além da própria livraria, a cafeteria Café Leal era o principal ponto de encontro deles. Era calma, confortável e servia cafés quentes e cremosos incomparáveis. Também tinha um ambiente rico e acolhedor: as mesas redondas eram de madeira polida cujo os pés pareciam esculpidos. As paredes dançavam com tons de marrom e desenhos negros feitos à mão de xícaras e grãos de café. Alguma banda de jazz ecoava pelo salão através das caixas de som presas aos cantos do teto; no momento, o clarinetista tocava seu solo, acompanhado pelas notas lentas do pianista.
    Era chique, mas não luxuoso.
    O local nem sempre estava lotado, mas nunca estava vazio. Agora, além dele e de Murphy, outras três mesas estavam ocupadas.
    —Ainda tenho que roubar essa ideia. — disse Edward, apontando para as caixas de som. — Umas músicas antigas combinariam no ambiente da livraria.
    Sra. Murphy balançou a cabeça de leve, como se estivesse concordando e apreciando a música simultaneamente.
    —Você diz isso há meses. Mas não mude de assunto. Por que não me chamou ontem lá no parque? Sua companhia teria sido ótima.
    —A senhora parecia concentrada no livro. Não queria atrapalhar seu momento sagrado.
    —Sagrado? Estava lendo um romance, não a Bíblia.
    Edward não conseguiu impedir um sorriso.
    —Prometo que da próxima vez dou uma passadinha por lá só para ver a senhora. — ele tomou um gole do cappuccino espumoso sobre o seu lado da mesa.
    —Nada disso, você vai ficar lá comigo.
    —Vai me segurar?
    —Te grudo no banco. — ela abriu um sorriso travesso.
    Edward não conhecia ninguém com um sorriso mais belo. Conseguia sentir uma prezerosa e genuína felicidade emanada do rosto simpático da Sra. Murphy. Os olhos azuis e finos lábios rosados na pele clara transmitiam gentileza, inocência e empatia. Tinha a icônica personalidade de vovó-querida que todos desejam, aquela que lhe dá o que você deseja de Natal, que magoá-la parece um pecado inadmissível. E embora ela não fosse, de fato, sua avó, era como Edward a considerava. Assim ele podia fingir que possuia um parente que ligasse para sua existência.
    —Então, — começou Edward — estava lendo Desperdiçando Sonhos?
    Sra. Murphy pôs seu café com chocolate próximo ao prato com o pedaço de bolo parcialmente comido.
    —Estava, terminei ontem à noite. O que você anda lendo?
    —Qual a "esquisitice da vez"?
    Sra. Murphy riu, a gargalhada adorável preenchendo o coração de Edward.
    —Exatamente. Qual a esquisitice da vez?
    —Tortura Branca, Madelyn Taylor. Parei no capítulo dois. — corrigiu sua postura na cadeira. — É sobre a decadência de um iraniano posto numa tortura psicológica por alguns meses.
    —Bem a sua cara.
    —Por quê?
    —Qualquer coisa sobre sofrimento é bem a sua cara. — ela balançou a mão direita como se espantasse moscas invisíveis enquanto explicava.
    —Eu gosto de mistérios.
    —Entender você já é um.
    Sra. Murphy fincou o garfo no pedaço do bolo macio, mergulhando-o no café e o levando até a boca. Era um hábito comum. Edward primeiro achara esquisito, mas uma vez tentara fazer o mesmo e era, surpreendentemente, muito bom.
    —Certeza que não vai mesmo querer nada? — ela perguntou. — Pode pedir o que quiser.
    —Não, não. Obrigado. Já comi em casa. E lembre que hoje eu que pago.
    —Já estou me arrependendo de ter concordado.
    —Pois vá se acostumando que a senhora tem que concordar mais vezes. — tomou um último e satisfatório gole do cappuccino, sentindo o líquido cremoso se espalhar por toda a língua até descer ao encontro do seu resto. — A senhora vai levar algo da livraria hoje?
    —Se você não me forçar a aceitar descontos, acho que vou pegar algum romance.
    —Que tipo de vendedor eu seria se não tentasse? — perguntou, sorrindo.
    Sra. Murphy não era só uma cliente especial, era uma pessoa especial. Ela já havia o ajudado tanto financeiramente, emocionalmente, ou de qualquer forma que encontrasse. Já conhecia e comprava da livraria desde que Harold era o dono, e Edward nada mais que uma criança. Era a única que ainda permanecia ao seu lado depois de Harold partir, o apoiando todo dia. Mesmo não gostando de terror ou drama, havia lido todas as obras que Edward escrevera, dizendo o quanto era talentoso. Às vezes deixava dinheiro no balcão da livraria enquanto ele não estava vendo, mas quando Edward a perguntava sobre, ela fingia que não sabia de nada. Edward suspeitava que ela nem lia alguns dos livros que comprava, mas o fazia para apoiá-lo.
    Se sua alma não era a de um anjo, ele não entendia como alguém conseguia ser tão bondosa.
    Edward tentava, no mínimo, dar desconto nos livros, mas ela sempre queria pagar o preço original. Ou pagar os locais que eles iam juntos. Sra. Murphy tinha uma condição financeira excelente, de fato; mas a de Edward também era bem estável, não queria se aproveitar da senhora. Ele era tão grato por tê-la ao seu lado.
    —Já chegou aquele O Baú de Mary? — perguntou Murphy.
    —Não tenho certeza. Vou checar assim que chegarmos lá.
    —Hum. E seus livros? Faz tanto tempo que você não escreve. Quando vou ler algo do tão famoso Edward Harrinson?
    Edward sorriu. Ele gostaria que aquilo fosse verdade.
    —Algum dia, quem sabe. — respondeu, com uma mínima mas perceptível tristeza na voz.
    Edward pegou seu celular sobre a mesa e olhou o horário, o guardando no bolso logo em seguida.
    —Já são quase nove. Vamos?
    Sra. Murphy deu a última garfada no bolo e terminou seu café. Edward levantou o braço, chamando a garçonete de pele escura num uniforme branco e marrom com um bloco de anotações em mãos. Pegando sua carteira, puxou o que sabia que era suficiente para pagar a conta de ambos.
    —Eu pago minha parte. — protestou Murphy, abrindo a grande bolsa de couro que carregava.
    —Hoje não.
    Edward entregou o dinheiro e a garçonete se retirou com um sorriso.
    —Que cavalheiro. — pondo a mão no peito em um ato dramático exagerado, sua voz saiu como se numa cena de teatro. — Aprendeu com o melhor.
    Aquelas palavras prenderam na garganta de Edward, que se esforçou para exalar um suspiro pesado. Sabia que Sra. Murphy só queria elogiar tanto ele quanto Harold, mas quando o mencionavam, era inevitável que seu estado emocional fosse alterado de surpresa. Sua mente processava as memórias com mais força do que ele tinha para congelá-las novamente. E quando não conseguia, ele chorava.
    Mas ele não podia chorar. Não agora na frente daquela gente.
    Interrompendo o pensamento, ele sorriu ao comentar:
    —É, com o melhor.
    Sra. Murphy também sorriu, orgulhosa.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: May 18, 2021 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Rosa NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora